«A dor era tanta que eu precisei de me deitar no chão, para o sentir», a frase foi dita por uma mãe que nunca teve os seus filhos, mas que os continua a sentir. Os filhos dos quais se lembra a cada ano, no dia em que os teve de expulsar do seu corpo. As palavras são cruas, mas Olga Ferraria quer que sejam ditas, porque acredita que só partilhando testemunhos como o dela, se ajudará outras mulheres a superar a dor de um aborto. No seu caso não perdeu um, mas sim dois fetos. Foi em 2017 que engravidou, no ano seguinte a ter casado. A vida estava a levar o caminho que queria e durante 12 semanas (três meses) de gestação, tudo parecia estar bem. «Eu andava a ser seguida no público e no privado e numa consulta no público, o médico disse-me que um dos fetos estava mais pequeno, mas eu tinha uma gravidez molar por isso é natural isso acontecer», conta. Naquele momento, Olga Ferraria acreditou que tudo «ia correr bem», que era normal, mas o pior estaria por vir.
«Depois fui à consulta das 12 semanas mas no privado e foi aí que tudo começou», recorda. Primeiro, Olga e o marido, André, tiveram a confirmação que um dos fetos estava realmente mais pequeno e «que dificilmente sobreviveria ou poderia vir a ter alguma deficiência» e aí a decisão «de querer continuar ou não com este feto» ficou nas mãos do casal. Com o outro feto tudo parecia estar bem. «Viemos para casa de Coimbra onde estava a ser seguida, tínhamos cinco dias para decidir se queríamos manter ou não o feto. Foram os cinco piores dias da minha vida», relembra. Retirar o feto foi a decisão de Olga e do marido: «Aconselhados pelo médico e por toda a gente à nossa volta que nos dizia que não fazia sentido estar a pôr no mundo um bebé saudável e outro com uma deficiência grave ou que até podia não resistir».
Já no hospital, quando Olga Ferraria se preparava para retirar o feto, o pior aconteceu. «Antes do processo, o médico disse que era melhor fazermos mais uma ecografia para ver como as coisas estavam e até para ver como tinham avançado naqueles cinco dias e foi quando ele me disse que já não íamos avançar com o procedimento», conta. Os dois fetos tinham falecido porque apesar de estarem em bolsas separadas estavam a alimentar-se pela mesma placenta. Os três dias seguintes a esta notícia foram dos mais duros, física e psicologicamente. «Estive três dias internada, um dos fetos saiu por si ao final de dois dias e meio, nós vamos à casa de banho e sai, eu vi, é horrível. O outro não consegui fazer a expulsão e tive que ir ao bloco operatório», recorda. Apesar de algumas complicações médicas, tudo acabou por correr bem.
O luto por alguém que não se chegou a conhecer
Chegar a casa sem os bebés. O luto, a gestão das expetativas criadas, nada era fácil. «Os meus meninos», é assim que se refere aos fetos que perdeu ainda hoje. Os nomes dos bebés ainda não estavam decididos, até por não se saber os sexos, mas já estavam imaginados. Já lhes tinham sido oferecidas lembranças. De roupas tinha apenas dois pijamas, comprados um dia antes da consulta em que ficou a saber que um dos fetos estava pequeno. «Roupa nunca deixei que comprassem nem eu quis comprar antes das 12 semanas», recorda Olga Ferraria. Afirma com certeza que não é por não ter chegado a conhecer os seus filhos que não é necessário fazer o luto. «Na altura fomos logo acompanhados por uma psicóloga que me aconselhou a escrever um texto nas redes sociais a expor o que tinha acontecido porque era difícil quando eu passasse na rua que as pessoas me pusessem a mão na barriga a perguntar como estavam os gémeos», lembra.
Durante algum tempo, a ideia de voltar a tentar ter filhos estava posta de parte. «Primeiro eu não queria, estava muito traumatizada, vai-se deixando de sofrer tanto com o tempo, mas continua a sofrer-se, depois era o André que não queria», explica. A dor que Olga e o marido sentiram veio fortalecer a relação que os unia, ao contrário de alguns casais que se afastam. «A seguir ao aborto só nós compreendíamos o que estávamos a sentir, ficámos muito unidos e a relação nunca esmoreceu, pelo contrário. Cada vez que falamos dessa altura, vimos um no outro um enorme respeito e admiração. O André foi um homem exemplar em todo este processo. Ele esteve ali inteiramente para mim», recorda. Não menosprezar a dor pela qual passam os homens é também uma mensagem que Olga Ferraria quer transmitir. «Houve um dia que lhe disse que era o dia para ele chorar. Ele estava a ser o homem forte, a aguentar tudo, as pessoas ligavam para ele para não me incomodar a mim, mas ele também estava a sentir aquela dor, não são apenas as mulheres, ambos são pais», salienta.
A dor levou a que mudasse de vida
Despediu-se da empresa familiar do pai e começou a trabalhar na área da fotografia a tempo inteiro. Olga quer com este exemplo passar uma mensagem positiva. «Isto foi a pior coisa que aconteceu na minha vida mas ao mesmo tempo ajudou-me a perceber algumas coisas, a seguir os meus sonhos. Já que Deus não me tinha dado o que eu mais desejava, eu e o André lutámos por outros sonhos», afirma. Entre os sonhos, há um que está a voltar, agora com os corações mais serenados, Olga e André já pensam em constituir uma família. Apesar do «medo», ambos sentem que está na altura de seguir em frente.
Como fotógrafa, Olga vê, pela lente, grávidas e bebés e lidar com isso nem sempre foi fácil, mas a gravidez esteve ainda mais presente no seu seio familiar. «Quando fiquei grávida tinha duas cunhadas grávidas, uma do meu lado e outra do meu marido. A minha sobrinha direta tem exatamente a idade que os gémeos teriam. No hospital, elas eram a minha preocupação, não as queria afligir com as más novidades», relembra. É também madrinha da sobrinha. «Cada vez que ela faz anos, olho para ela e penso que poderia ter filhos daquela idade, claro. Mas ela não tem culpa nem ninguém e nós aprendemos a conviver com isso. O facto dos sobrinhos virem a caminho até ajudou a superar melhor a dor», afirma. O que mais lhe custava eram as ecografias, o som do coração a bater, agora algo mais fácil de lidar. «As ecografias são muitas vezes usadas nas sessões fotográficas e lembro-me da primeira sessão em que tive de mexer numa ecografia, mas pus o meu papel de fotógrafa e tirei o meu papel de Olga a nível pessoal», recorda.
O dia em que abortou, a 5 de outubro, será para sempre um dia marcante. No entanto, Olga tem feito questão de transformá-lo num dia fora da rotina e acredita que tem contado com a ajuda dos “seus gémeos” que a têm «guiado». «Tenho uma história curiosa, até porque passei a acreditar que há um motivo para as coisas acontecerem, ganhei esta filosofia depois do aborto, no dia em que entrei para o bloco a anestesista disse-me para pensar num sítio onde gostava de estar e veio-me à ideia Cuba. Um ano depois, nesse dia, eu estava em Cuba. Não foi algo muito pensado, mas quando uma colega me perguntou se queria ir a Cuba eu pensei “uau”», conta. «Acredito mesmo que as coisas boas me acontecem porque eles olham por mim», diz, muito emocionada. A todas as mulheres, homens e mesmo para as pessoas que não passaram por isto, deixa uma mensagem: «Isto é mau, mas há sempre um novo nascer do sol. Se Deus quiser vai haver um bebé arco-íris. Houve uma nova vida, uma nova Olga, um novo André, um novo casal, que é melhor ainda. Eu sou melhor como pessoa, portanto, tudo acontece por um motivo».
(Este artigo faz parte do Suplemento Requiem da edição 956 d’O Portomosense)