Seis anos de curso marcados por uma alta intensidade de aprendizagem teórico-prática, uma dura Prova Nacional de Acesso (PNA) a uma especialidade cuja formação pode chegar a outros tantos anos, múltiplas horas repartidas entre hospitais e centros de saúde e uma “obrigatoriedade moral” de trabalhar diariamente horas extraordinárias em condições que, reivindica a classe, «não estão adequadas para proteger quem trabalha e quem depende do Serviço Nacional de Saúde (SNS)». O Portomosense tentou saber, junto de uma médica residente no nosso concelho, o que continua a atrair os mais jovens para uma profissão que em tempos foi considerada privilegiada mas que, aos dias de hoje, e falando particularmente do SNS, parece cada vez mais fragilizada e exposta à crítica pública, sobretudo quando a escassez de médicos impera em determinadas regiões do país.
Adriana Vazão, nascida em 1995 e natural da freguesia de Pedreiras, formou-se como médica entre 2014 e 2020 na Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa e está há já três anos no Centro Hospitalar de Leiria (CHL), unidade onde trabalha como médica de segundo ano de Internato de Formação Especializada em Cardiologia. Fascinada pelas ciências humanas e da saúde desde os tempos do ensino secundário, entrou no curso por sentir que era aquele que tinha mais a ver consigo. Durante os seis anos que passou na universidade, diz nunca ter-se arrependido. Contudo, assume que foi apenas quando terminou a formação pré-graduada e começou a estagiar no hospital que tomou «conhecimento dos problemas que já existiam no setor da Saúde» e que se apercebeu dos rumos que estavam a ser tomados pelo SNS.
«Nos últimos anos da minha formação fui sentindo algumas das dificuldades, sobretudo durante a pandemia de SARS-CoV-2, altura em que o nosso Serviço Nacional de Saúde, que parecia até então equilibrado, se mostrou insuficiente para atender à necessidade dos doentes. Depois de terminar o curso, comecei a trabalhar no CHL em janeiro de 2021, durante o pico de número de internamentos relacionados com a covid-19. O que senti então foi que todos os profissionais de saúde estavam a dar o que tinham e o que não tinham para conseguir responder às necessidades dos doentes. Houve muito trabalho suplementar e muito poucos recursos à disposição. Foi uma época em que os sistemas hospitalares foram realmente testados, o que obrigou ao cancelamento ou adiamento de diversos procedimentos programados, como por exemplo consultas e cirurgias», aponta.
Efeitos da pandemia ainda se fazem sentir
À medida que a população foi sendo vacinada e o número de casos diários começou a reduzir, «o internamento ficou um pouco mais aliviado», considera. No entanto, para os profissionais de saúde aqueles anos de trabalho intenso não se quedaram por ali: «Para trás tinham ficado muitos doentes por ver, com exames e consultas atrasados, e o trabalho acumulou-se. Esta é uma fatura que ainda hoje estamos a pagar. Trabalhamos recorrentemente em horário suplementar para tentar acompanhar as listas de espera, de forma a que ninguém fique por tratar. Ainda assim, sentimos que estas não são as condições ideais para podermos dar o nosso melhor no SNS, pelo que há neste momento uma série de negociações com o Estado a decorrer e que têm levado, inclusivamente, a algumas greves», explica.
Durante e após o período mais crítico da pandemia, «muitos colegas optaram por deixar o SNS e rumaram ao sistema particular, sendo que as suas saídas não foram devidamente colmatadas, mesmo com a entrada de novos profissionais. Como tal, o trabalho passou para os que ficaram e isto tornou-se num círculo vicioso porque desta forma atingimos muito rapidamente o nosso ponto de rutura. Ao longo dos últimos anos, os hospitais do SNS têm funcionado, e funcionam cada vez mais, à base do trabalho extraordinário dos seus profissionais. Se nós não fizermos horas extra, o sistema não funciona, e esta política não é sustentável. Temos colegas que, desde janeiro, já fizeram mais de 400 horas [suplementares]», lamenta.
Sobre as críticas de que a sua classe é alvo por parte da opinião pública, Adriana Vazão é perentória: «São legítimas porque todos temos direito a cuidados de saúde e todos temos direito a um médico. Quando falo com pessoas que não pertencem à área da Saúde, tento sempre ter conversas construtivas, mostrando a nossa realidade, mas o que sinto é que grande parte das críticas advém do facto de as pessoas não estarem a par daquilo que é a realidade do trabalho médico neste sistema. Por isso mesmo tento mostrar o nosso lado e a verdade é que, regra geral, quem critica torna-se muito receptivo aos nossos argumentos», conclui.
Mas nem só as consequências da pandemia ou a opinião de muitos dos utentes incomodam os profissionais de saúde. A falta de literacia nesta área faz também com que fiquem sobrecarregados: «Continua a haver muita gente a recorrer aos serviços de urgência com situações que não o justificam e que podiam ser resolvidas pelo médico de família, mas às vezes a ânsia de ter uma resposta imediata leva a que haja longas filas à espera de atendimento nos hospitais e isso limita-nos porque os nossos recursos são finitos».
Profissionais de saúde acreditam no futuro do SNS
Ainda que ciente de todas as dificuldades inerentes à profissão, Adriana Vazão diz-se satisfeita com a sua escolha académico-profissional, acredita «num SNS apto a responder às necessidades de todos» e reitera que «esta é uma fase de mudanças para que o futuro da saúde pública em Portugal seja melhor».
“Esta é uma carreira que ainda vale a pena?”, perguntámos. «Sim, sinto que sim. Ainda tenho esperança no futuro da Medicina em Portugal», afirma.