Os contratos públicos realizados pelos municípios sob a forma de ajuste direto são, com alguma frequência, tema de destaque na comunicação social e, muitas vezes, não é para menos. Há quem use e abuse desta forma de adjudicação não concorrencial tendo, depois, grande dificuldade em justificar o porquê das escolhas feitas. Não se trata, apenas, de justificar por que se contratou diretamente esta ou aquela empresa ao invés de se abrir concurso público ou optar pelos contratos por consulta prévia (de três empresas) mas, também, onde foram gastos os dinheiros públicos que lhes estão confiados.
Consciente desta realidade, O Portomosense foi tentar perceber qual o peso dos ajustes diretos feitos pela Câmara de Porto de Mós no conjunto dos contratos públicos e que tipo empreitadas, serviços e bens têm sido adjudicados sob este modelo. A conclusão é simples: mais de metade dos contratos realizados entre 15 de agosto de 2022 e 15 de agosto de 2023 [o período que nos serviu de análise] foram por ajuste direto (67 num conjunto de 128 de várias tipologias). Quanto à matéria contratada e aos valores envolvidos, há contratos para todos os gostos, o que não é de estranhar, tendo em conta a natureza da contratante.
Trinta mil euros para exposição
Dos quase 70 ajustes diretos, o mais elevado em termos financeiros é o da contratação do serviço de transporte escolar em carreiras públicas para o ano letivo 2023/24. São 303 424,75 euros. O segundo diz respeito à aquisição de serviços de recolha a destino final de lixos e dos serviços de limpeza urbana no concelho (123 556,70 euros). Encerra o top 3 a exposição A Pedra e a Mão, que representa um investimento direto de 29 979 euros. Trazer a Porto de Mós arte que percorreu mundo não parece ser coisa propriamente barata, mas o preço inclui desde a desmontagem das peças no Museu dos Coches (onde estava antes de vir para cá) e o transporte e consequente montagem na Central das Artes, até ao transporte e alojamento da equipa técnica e à definição de toda a componente criativa e artística, nomeadamente, em termos de conteúdos e comunicação, webdesign e programação de site. O contrato previa, ainda, entre outros, a produção de uma peça do conceituado Siza Vieira.
Já o ajuste direto mais barato para os cofres do Município diz respeito ao desenvolvimento de webAPP e produção de conteúdos para uma visita com 13 pontos de interesse audioguias, que tem um custo de 5 500 euros. Esta aplicação disponibilizará informação nos formatos áudio, vídeo, imagem e texto. O acesso aos conteúdos será por QR Code e/ou código numérico. Terá versões em português, inglês, francês e língua gestual. O segundo ajuste mais barato (5 780,73 euros) foi o do aluguer de Insufláveis, Air Bungee, piscinas e barquinhos a pedal para a Semana da Educação. Já o Neo Run no Festival Viver, em Mira de Aire (2022), custou 6 000 euros.
Não podendo trazer aqui todos os contratos, deixamos, apenas, alguns exemplos e começamos pela área cultural. Contabilizar o valor económico da Cultura é um exercício sempre arriscado porque aquilo que para uma pessoa é importante, para outra pode não ser tanto. Se a este juntarmos a comparação com empreitadas, bens e serviços de outras áreas, mais a situação se complica. Não é a nossa intenção. A descrição dos projetos e o custo de cada um ficam, mas a análise do valor “real/importância” deixamos ao critério de cada leitor.
Quanto custa a cultura?
Os projetos “chave na mão” parecem ter vindo para ficar. Assim, o Festival Teatro de Rua custa à Câmara 17 500 euros, mas não tem que se preocupar com muito mais, a companhia de teatro profissional, de Leiria, garante toda a componente técnica e artística para que depois os grupos do concelho possam brilhar em palco com a sua assessoria. O projeto Crianças ao Palco segue, basicamente, o mesmo modelo, a entidade contratada assegura tudo, desde a ida dos professores às escolas, até à equipa e aos meios para fazer a transmissão online da gala final (com muitas outras pelo meio, claro). A autarquia paga por isso 13 250 euros.
Ainda na Cultura há um nome que tem estado em evidência nos últimos anos ao assinar várias intervenções artísticas, tanto na sede de concelho como nalgumas freguesias. Basílio, nome artístico de Rui Basílio, é o responsável pelo “mural” à entrada da sede de concelho e que é dominado pela simpática idosa, a Dona Chica e seu gato, que nos observam do alto da sua janela. O artista assina também o mural que evoca o barro e a pedra para dar as boas vindas à freguesia das Pedreiras. Pelo primeiro trabalho a Câmara pagou 7 500 euros, pelo segundo, 9 950.
O Município está a fazer uma prolongada comemoração dos 50 anos do 25 de Abril e foi nesse âmbito que o cantor Agir atuou na Central das Artes. A atuação do artista teve um custo de 18 000 euros, no entanto, o espetáculo ficou mais caro porque foi necessário contratar, também por ajuste direto, os serviços de uma empresa de som e luz e isso implicou mais 7 520,86 euros. E já que estamos a falar de comida, fique a saber que o habitual jantar de Natal que a Câmara oferece aos seus cerca de 300 funcionários custou, este ano, 8 700 euros.
Mostrar Porto de Mós na A1… e nos media
Por ocasião das Festas de São Pedro, Porto de Mós tem sido presença constante no programa da TVI, Somos Portugal. A Câmara garante que o que gasta para trazer cá a televisão é um investimento com retorno. Este ano, só em refeições para a equipa de trabalho foram gastos 7 210 euros. Novidade de 2023, também pelo São Pedro, foi a presença da Rádio Renascença, com o espaço Descobrir Porto de Mós, com a realização de reportagens em direto, spot promocional e divulgação nos seus canais digitais. A fatura foi de 9 360 euros.
No período em análise, o Município contratou por ajuste direto, para as Piscinas Municipais ,cinco técnicos de natação e um de natação e hidroginástica (valores por pessoa entre 6 162 e 7 800 euros).
Outro contrato por ajuste direto é o do aluguer de dois outdoors de promoção e comunicação visual do Município, na principal autoestrada do país, a A1. Se circula na autoestrada Lisboa/Porto, decerto já viu, na zona de Santa Iria da Azoia, após a saída de Vialonga, ou a norte, após o nó de Estarreja, um outdoor de grande dimensão com uma bela foto do nosso Castelo. É difícil não ficarmos orgulhosos, mas quanto é que isso custa? De acordo com a informação disponível no portal Base, onde têm de constar todos os contratos públicos realizados, custa 19 500 euros.
“O ajuste direto é uma violação das regras da concorrência ainda que sem intenção maliciosa”
O ajuste direto é um tipo de contrato cuja má fama, justa ou injustamente, é pública, o que não significa que estejamos a falar de algo ilegal. É legal, mas nada recomendado em termos de concorrência, sublinha João Manuel Oliveira Antunes, jurista, formador e docente convidado em cursos de pós-graduação na área da Contratação Pública, num artigo de opinião publicado em 2021 no Observatório Almedina.
A escolha d o a juste direto objetivamente é «uma violação das regras da concorrência, ainda que se admita que na maioria dos casos, não é escolhido com intenção maliciosa, pela entidade adjudicante. Mas, intenções à parte, o facto é que sempre que uma entidade pública procede a um ajuste direto, está a usar dinheiros públicos para pagamento de empreitadas, bens e serviços a uma entidade por si discricionariamente escolhida, sem que o preço da adjudicação esteja escrutinado. Esse escrutínio só será realmente possível, havendo concurso público. E a única limitação que na lei existe à escolha do ajuste direto é o preço base. Só a partir de determinado preço, a entidade adjudicante terá de sujeitar o objeto do contrato à concorrência. Salvo isso, mais nenhuma explicação se pede à entidade adjudicante», realça. De acordo com o especialista, em geral, o argumento que os municípios e restantes entidades públicas usam é o da celeridade, algo que, no seu entender, será estranho aceitar sem um esgar de humor porque «a única verdadeira diferença no tempo de execução de um procedimento por ajuste direto ou consulta prévia a três entidades e um concurso público inteiramente aberto, é a necessidade de publicação do anúncio. Fora isso, todos os restantes requisitos da contratação têm de ser cumpridos».
«O que se poupa em tempo? Os nove dias do anúncio e o trabalho de avaliação e classificação das propostas por um júri ou pelo pessoal do adjudicante. Não se poupa substancialmente mais nada, mas evita-se a possibilidade de reclamações de concorrentes, pois no ajuste direto só existe um convidado. Em suma: poupa-se trabalho à administração pública central e local, em prejuízo da concorrência e, portanto, em abstrato, de melhores preços», conclui João Manuel Oliveira Antunes.
O que diz a lei?
A lei define várias situações em que os contratos por ajuste direto podem ser feitos. O mais comum é os Municípios recorrerem à alínea c) do artigo 24 do Código dos Contratos Públicos. Diz a mesma que os contratos por ajuste direto podem ser feitos «na medida do estritamente necessário e por motivos de urgência imperiosa resultante de acontecimentos imprevisíveis pela entidade adjudicante, não possam ser cumpridos os prazos inerentes aos demais procedimentos, e desde que as circunstâncias invocadas não sejam, em caso algum, imputáveis à entidade adjudicante».
Outro argumento usado é de que determinado “trabalho” só pode ser confiado a uma entidade específica por se tratar de uma obra de arte ou espetáculo artístico; por não haver concorrência por motivos técnicos ou seja necessário proteger direitos exclusivos.
Nota de redação: Este artigo motivou o exercício de Direito de Resposta do Município de Porto de Mós, que poderá ser lido na edição 1005 d’O Portomosense.