O café sai a ferver e o capuccino doce, com o chiar da máquina a mesclar-se com o bambaré instalado no autocarro azul e branco que fez da Praça Arménio Marques a sua última paragem. Os portomosenses aderiram com excitação à visita do Doppellecker – nome que joga com as expressões alemãs quase homógrafas e homófonas para “duplo deck” e “duplamente delicioso” – e fizeram questão de visitar o peso-pesado de 1959 que durante décadas transportou passageiros pelas ruas de Berlim, agora, com um visual renovado.
Por dentro, «é tudo tirado dos anos 50, 60», com as molduras a condizer, os bancos de estofo vermelho e a jukebox à entrada; por fora, acima da esplanada amovível, em letras garrafais, lê-se «Um lugar para seres apenas TU – alimentado a paz, amor e café».
Quem recebeu os portomosenses, e quem explicou tudo isto a O Portomosense, foi Michel Malcin. O alemão de 43 anos começou esta requalificação do autocarro em 2018, terminou-a em 2019 e em 2022 baixou o travão de mão e fez-se à estrada com uma missão: «Não importa de onde as pessoas vêm, muitas delas inspiram-se em ver o tipo de vida que vivemos, de poder estar em qualquer lugar do mundo, e a nossa missão é apenas espalhar amor, paz e café».
Nossa? Perguntar-se-á o leitor. Sim, porque entre a saída da Alemanha e a primeira paragem em Santiago de Compostela (Michel é um ex-pastor luterano), conheceu Helene Volkensfeld. Ela era professora antes de embarcar nesta aventura e era também ela que, atarefada, ia subindo e descendo as estreitas escadas do Doppellecker, tabuleiro na mão e sorriso no rosto. Apaixonou-se pelo autocarro antes de se apaixonar por Michel mas, quando assim foi, nunca mais abandonou aquela que é agora a sua “casa”. Partilham um pequeno quarto na frente do deck superior e aproveitam sem pensar no regresso esta «aventura» que, diz Michel, não tem próximo destino.
«O nosso plano é mesmo não ter plano», confessa, entre risos. Vão à mercê do gasóleo e também das pessoas que conhecem pelo caminho, como foi o caso com esta paragem em Porto de Mós – que surgiu «a convite de Herman [Alves] e do seu livro», após o autor radicado no Canadá os ter conhecido na penúltima paragem do Doppellecker, o Sítio da Nazaré. Esteve por lá em dezembro, mas uma avaria obrigou-os a “estacionar” temporariamente numa oficina do concelho da Batalha – mesmo a tempo do Natal. Viajaram para casa, Michel foi ver os filhos que teve do primeiro casamento, e regressaram agora, marcando o seu calendário de viagens com esta primeira paragem, mais uma no seu mapa, onde também se inclui Esmoriz ou a Figueira da Foz.
O casal quer «conhecer Portugal, as pessoas são incríveis e malucas pelo autocarro». Michel adora o clima e as gentes, mas ainda não sabe português. «Ainda», faz questão de frisar. Para já, vai conversando com quem sabe inglês ou alemão, espalhando boas energias e vivendo sem grandes preocupações. Em 2018, via-se à beira de um esgotamento, exausto, infeliz. Agora, diz sentir-se «muito mais que apenas bem»: «Gosto de andar na estrada, de conhecer pessoas diferentes, preenche-me o coração».
Fotos | Luís Vieira Cruz e Bruno Fidalgo Sousa