Quando na madrugada do dia 6 de setembro um incêndio deflagrou no Codaçal, em pleno coração do Parque Natural das Serras de Aire e Candeeiros, dificilmente alguém imaginaria que três meses depois, uma das árvores que perdera a vida nesse fogo, fosse dar origem a um presépio, em Serro Ventoso. A ideia partiu do presidente da Junta de Freguesia, Carlos Cordeiro, que assume um grande fascínio por «tudo o que tem a ver com arte», mas foi Nelson Ramos, escultor há 27 anos, que fez a obra nascer.
Durante duas semanas, o artista natural de Faro, esteve no largo do Salão Paroquial de Serro Ventoso a esculpir, ao vivo, quatro das figuras presentes no presépio. As esculturas foram feitas com recurso a uma motosserra, uma ferramenta que considera ser ainda pouco valorizada. «Muitas pessoas não se interessam, porque entendem que as motosserras são para cortar árvores e mais nada», lamenta Nelson Ramos, acrescentado que por ser um tipo de arte «pouco usual», por vezes, sente-se «esquecido».
Aquando da visita d’O Portomosense, o escultor, acompanhado pela esposa e pela filha, encontrava-se já a finalizar os últimos pormenores nas suas obras de arte. Para isso, recorreu ao óleo de linhaça que além de «nutrir a madeira e afastar o bicho», permite que a peça «dure mais». A rapidez deste projeto, acredita, deveu-se à qualidade da matéria-prima e também à sua agilidade, que tende a ser cada vez maior: «Tudo avançou muito rápido. A madeira, apesar de queimada, estava muito boa e facilitou o trabalho. Mas a minha prática também já é outra».
Se a autarquia assim o entender, o presépio que hoje é composto por quatro peças, no futuro poderá vir a ficar completo com as restantes personagens. «Se a população gostar, cá estarei para o ano para completar mais algumas peças ou a totalidade», antecipa o artista. «Ter o presépio completo seria extremamente interessante», afirma Carlos Cordeiro.
Homenagear uma árvore morta através da arte de esculpir
A recriação das figuras do presépio foi feita recorrendo apenas a uma «única árvore», outrora totalmente queimada pelo incêndio, e que através das mãos de Nelson Ramos foi transformada em peças com «1,60 metros de altura», voltando assim a ganhar uma nova vida. «As minhas esculturas são feitas de árvores que morrem nos incêndios, caem em tempestades ou têm que ser abatidas por meter a vida humana em risco. Essa é a minha vida», explica. Sob o lema «nunca abater uma árvore para fazer uma escultura», o artista garante que já recusou trabalhos porque lhe foi pedido que fizesse precisamente o oposto: fazer uma escultura a partir de «árvores vivas». «A árvore simboliza muito para mim. Por isso, só aceito fazer com árvores cujo o seu destino era a lareira ou que iam ser totalmente destruídas pelos insetos. É uma forma de homenagear a árvore e de dar valor àquele esplendor enorme, através da arte da escultura», frisa.
O «bichinho da arte» nasceu há 27 anos e foi-se acentuando através da convivência que manteve com um mestre entalhador. Nessa altura, fazia esculturas utilizando duas ferramentas: formão e goiva. O gosto pela motosserra chegou apenas há seis anos e foi despoletado pelo vice-presidente da Câmara de Castelo de Vide, que lhe propôs fazer um presépio de «grandes dimensões» com árvores que estavam apodrecidas. «O desafio foi mesmo muito grande porque os troncos estavam em péssimas condições», recorda. A partir do momento em que sentiu que tinha ultrapassado o desafio, com sucesso, começaram a “chover” pedidos de outras autarquias para que fizesse esculturas com base em troncos de «árvores mortas».
Viver no fio da navalha
Não fosse a pandemia e por esta altura, a família Ramos já teria «corrido o país todo» em eventos de demonstração. Porém, a «meia dúzia» de trabalhos que tinha marcados para este ano acabaram todos cancelados e desde fevereiro que estava parado, «sem qualquer tipo de rendimentos». Com um «portefólio muito grande», mas sem espaço físico, o único local onde as esculturas de Nelson Ramos podem ser vistas é na internet. Por isso, confessa que foi com uma enorme alegria que recebeu a chamada de Carlos Cordeiro. «Este é mesmo o nosso ganha-pão, é daqui que pago todas as minhas despesas. Os senhores presidentes de Serro Ventoso e de Monchique foram os únicos que tiveram coragem de me chamar para fazer este tipo de trabalho», afirma.
Defendendo a ideia de que tem de haver uma adaptação e um apoio aos profissionais, Carlos Cordeiro, alerta que o setor da cultura está a ficar no esquecimento. «A arte tem que ser valorizada, não nos podemos lembrar dos artistas só nas alturas boas. Há muitas famílias a sobreviver ou a viver à conta da arte», alerta.
Aquele que é visto como um presépio «único» e singular, tem despertado a curiosidade não só de fregueses, que «abraçaram logo a ideia», mas também de outras pessoas. «Ainda no outro dia passaram umas caravanas e esteve aqui um grupo de rapazes de bicicleta a tirar fotografias», conta o autarca. «Isto é uma mais valia, não só para a população, que fica com o presépio, mas também em termos de reconhecimento para a freguesia», acrescenta.