Em Entrevista… João Matos

Autor: | 23 Mai 2023

Brincadeiras com Leggo foram o ponto de partida para uma carreira de sucesso na área da Engenharia. João Matos, que cresceu no Alqueidão da Serra, conta-nos todo o percurso que o levou à Agência Espacial Europeia (ESA), na Alemanha, onde lidera uma equipa, gere vários projetos e está responsável pela manutenção de um programa que espera ver usado numa próxima missão espacial.

Trabalha atualmente na principal organização europeia dedicada à exploração espacial, mas todos começamos por algum lado. Quais foram os primeiros passos?
No primeiro ciclo escolar, estudei no Alqueidão da Serra, enquanto o segundo e terceiro ciclos foram realizados na Batalha. Não frequentei a escola em Porto de Mós, pois o meu pai era professor na Batalha, o que simplificou a gestão dos transportes. Comecei também a praticar natação em Alcanena e, mais tarde, juntei-me ao clube de natação da Batalha. Apesar do sucesso nas competições de natação, os resultados escolares não eram extraordinários, o que me levou a mudar para o Colégio de São Miguel, em Fátima, no final do terceiro ciclo e ensino secundário. Inicialmente, considerava o colégio uma prisão autêntica. Não era permitido sair nos intervalos, a menos que saltássemos o muro sorrateiramente. Se um professor faltasse, éramos obrigados a estudar. Não havia, portanto, o habitual “feriado”. Mais tarde, percebi que as medidas do colégio eram, de facto, as mais acertadas, evitando a dispersão e promovendo o convívio e os laços de amizade com os colegas. No ensino secundário, fiz as escolhas mais óbvias, incluindo Física, Geometria e Biologia, pois não tinha uma ideia clara do que queria fazer e, por conseguinte, limitei-me a deixar as minhas opções em aberto e seguir a “manada”.

De certa forma, foi bem a tempo de dar a volta aos resultados escolares e conseguiu entrar em Engenharia…
Para iniciar a minha formação superior, regressei às origens. Inscrevi-me no curso de Engenharia Eletrónica e Telecomunicações na Universidade de Aveiro. Mesmo assim, ainda não sabia ao certo a minha vocação. A cidade era simpática e eu até gostava de telemóveis, mas não tinha a noção do que me esperava… Os primeiros anos foram duros. Sentia-me em desvantagem em relação aos meus colegas que frequentaram escolas profissionais, especialmente nas áreas de eletrónica e sistemas digitais. No entanto, com a prática os resultados surgiram e comecei a gostar dessas áreas. O momento decisivo foi quando realizei um sistema de controle de velocidade para um elevador, que mais tarde serviu de mote para o meu projeto de tese intitulado Sistema de apontamento para experiências com o alphasat.

E como foi a entrada no mundo profissional?
Assim que acabei os estudos, deparei-me com uma enorme dificuldade: não tinha experiência de trabalho na área e a minha tese não tinha qualquer relação com o mudo empresarial. Situação rara, por exemplo, na Alemanha, onde os alunos são obrigados a estagiar numa empresa, tanto na universidade como no secundário, acabando assim os estudos já com anos de experiência profissional. Não estava de todo interessado nos trabalhos de consultoria que a maioria dos meus colegas aceitaram e, como não tinha feito Erasmus, decidi candidatar-me ao programa internacional de estágios INOV contacto, da Agência Para o Investimento e Comércio Externo de Portugal, onde os candidatos só sabem para onde vão estagiar após assinarem um contrato de trabalho. Estava pronto para o desafio. No pior dos casos, ficava com uma experiência de trabalho no estrangeiro. Recordo-me do dia em que chamaram o meu nome num grande anfiteatro: João Matos – Agência Espacial Europeia/Alemanha. Foi uma festa, não estava de todo à espera, especialmente porque não sabia “ponta” de alemão. Por norma, um a dois candidatos entram na ESA por esta via, e eu tinha sido escolhido.

Jovem, noutro país, a aprender tudo de novo… Fale-nos da sua experiência.
O estágio teve lugar no AGSA Lab (Advanced Ground Segment Applications) do ESOC (European Space Operations Centre) na secção GDA (Ground Data Applications), onde se desenvolvem aplicações de software para futuras missões. Foi fácil integrar-me na equipa. Havia três portugueses que orientaram o meu trabalho e sempre responderam pacientemente às minhas perguntas de principiante. A equipa de laboratório era composta por portugueses e um estudante alemão. Desenvolvi dois protótipos em Java para os CCSDS “operation services”: um consumidor genérico para esses serviços e uma prova de conceito para os serviços de navegação. Um dos orientadores estava contribuir para a “estandardização” desses serviços e, com ele, aprendi sobre propagadores de órbitas, como utilizar as bibliotecas de dinâmica espacial e aplicá-las no meu protótipo. No final do estágio, o meu chefe anunciou que tinha aberto uma posição na secção. Queria que me candidatasse, juntamente com o Steffan (estudante alemão). Seguiram-se uma série de entrevistas com empresas da área (CGI, Serco, Etamax Space) para concorrer à posição, isto porque a ESA raramente contrata diretamente para staff. Acabei por concorrer com a empresa alemã Etamax Space mas, no final, a ESA acabou por escolher o Steffan para a posição.

Foi difícil gerir essa situação?
Na altura, essa decisão causou-me um grande desgosto mas, de facto, foi o melhor que aconteceu para o meu desenvolvimento profissional. O contrato que tinha assinado era condicional, portanto, mais tarde, assinei um novo contrato, menos ambicioso em termos salariais para trabalhar num projeto da empresa para a ESA. Nesse projeto, aprendi novas metodologias de desenvolvimento ágil/incremental. Ao fim de cada mês havia uma reunião com a ESA para apresentar resultados, seguida de uma reunião de planeamento. Tínhamos um encontro diário onde reportávamos o que tínhamos feito no dia anterior e as tarefas para o dia de trabalho. Pontualidade era muito importante para eles… Se chegas 15 segundos atrasado, vais ter reclamações. Por isso, por norma tento chegar sempre antes das reuniões. Com o Berend Semke (technical lead/project manager) aprendi como focar as minhas ideias no essencial, planear tarefas, trabalhar de maneira eficiente e estruturar um e-mail de forma concisa. Sempre achei fascinante o facto de ele ser capaz de produzir mais do que todos nós trabalhando menos horas (o horário de saída dele era as 15 horas). O trabalho envolvia o desenvolvimento da framework de testes, mas também a implementação de testes para sistemas de controlo de missão (MCS), “deployment” e teste nos laboratórios da ESA, nomeadamente no GSRF (Ground Segment Reference Facility), onde se fazem testes de MCS com o equipamento de radiofrequência. Assim que terminou o projeto, surgiu uma nova posição, desta feita no GI (Ground Infrastructure) para suportar a equipa de IVT (Integration Validation and Team) do EGOS-CC. Desta feita, ganhei o concurso, pois estava melhor preparado e tinha experiência na framework de testes que o responsável queria reutilizar no EGOS-CC (European Ground Operation Systems Common Core). Passei a trabalhar nos escritórios da ESA, unicamente para eles (através da Etamax). A experiência correu bem e aprendi imenso sobre operações espaciais e as peculiaridades das diferentes missões, como elas se desviam dos standards tornando assim o software terrestre bastante complexo e difícil de testar.

Entretanto, esse projeto acaba…
Apesar de o responsável estar satisfeito com o meu trabalho, o projeto acabou por falta de fundos e fui obrigado a regressar aos escritórios da empresa. Propuseram-me ir para Bremen para trabalhar como consultor na OHB. Rejeitei a proposta e logo comecei a procurar soluções alternativas. Antes mesmo de me despedir da empresa, o Tiago Carvalho, que tinha sido o meu coordenador durante o estágio na ESA, soube da minha situação e ofereceu-me uma posição. Três meses depois, lá estava eu de volta à ESA (num projeto chamado EDLAB – End to end development Lab, ao qual ainda pertenço). Desta vez através da portuguesa Visionspace Technologies. O trabalho consistia em fazer “deployment” e teste de MCS´s, num ambiente representativo de missões. Um MCS é um sistema de controlo e monitorização que te permite enviar telecomandos para um satélite e receber telemetria. Portanto, o MCS-CC é um MCS baseado em EGS-CC (European Ground Systems Common Core – Iniciativa europeia que providencia “building blocks” reutilizáveis para construir sistemas de monitorização e controlo, em que as agências espaciais europeias são “stakeholders”, CNES, UK Space, ESA).

Qual o seu papel nesta missão?
As minhas tarefas consistem em juntar essas peças do puzzle (os chamados componentes EGS-CC e EGOS-CC), configurar para as missões de referência (Gaia e Bepi Colombo), integrar e validar patches da equipa IVT (mandar para trás se não funcionam) e suportar as campanhas de testes, servindo de ponte entre os desenvolvedores e os utilizadores (operadores de satélite). Atualmente ocupo três funções na empresa: sou gestor da equipa responsável pelas atividades relacionadas ao EGS-CC, project manager da parte do SCI-CC que diz respeito à Visionspace (deployment e validação) e responsável pela manutenção do MCS-CC. Além disso, faço ainda parte da equipa do EDLAB, onde ajudo na implementação de testes de sistema.

Levantou o véu em relação à vida de um jovem emigrante, mas queremos saber mais.
Sempre tive o desejo de viver no exterior. As notícias constantes de crise económica em Portugal ajudaram a consolidar essa ideia na minha mente. Por vezes é difícil estar longe da família, sobretudo porque nunca deixou que me faltasse nada, mas estou a três horas de avião. Os 30 dias mais feriados alemães e pontes servem para viajar pelo menos quatro vezes por ano a Portugal, sobrando sempre bastantes dias para visitas a outros países.

E a adaptação à Alemanha?
Sinto que já tenho enraizados em mim alguns aspetos da cultura alemã. Por exemplo, esperar na passadeira quando o semáforo está vermelho e nenhum carro está a passar (dando assim o exemplo aos mais novos que possam estar nas proximidades), bem como separar o lixo cuidadosamente – se não pões as garrafas de vidro no sítio certo, é um escândalo aqui – fico até confuso quando alguém não segue essa regra… Porém, há alguns aspetos que ainda me causam confusão e que são perfeitamente normais na Alemanha, como seguir as regras cegamente, mesmo que não façam qualquer sentido. Depois, quando não há regras é uma selva… Não existe senso comum. Por exemplo, quando abre uma nova fila na caixa do supermecado, todos correm para serem o primeiro da fila, em vez de, naturalmente, deixarem prosseguir os que se encontram mais próximos.

Então nem tudo é um mar de rosas.
Os portugueses têm o hábito de reclamar dos serviços públicos, no entanto, penso que estão mais bem servidos do que na Alemanha. Os médicos são mais cuidadosos e demonstram um interesse genuíno pelo paciente. Além disso, a burocracia alemã deixa algo a desejar. Por exemplo, se tiveres uma declaração de impostos com algo fora do normal para declarar, terás de contratar um contabilista, caso contrário, vais cometer erros e receber uma carta das finanças com perguntas.

Fala com imensa paixão do seu trabalho. Vê-se a fazer isto para o resto da vida?
Pretendo reformar-me cedo e talvez dedicar-me à agricultura biológica. Para isso, ponho grande parte do meu salário em investimentos. Em termos profissionais tenho como objetivo consolidar a minha posição na Visionspace/ESA e continuar a aprender sobre novas missões e operações.

Sente-se realizado?
Ainda não. Para isso, gostaria de ver uma missão a adotar o MCS-CC, sistema que ajudei a construir ao longo dos anos. “Swarm” é a missão que está mais próxima.

Como é estar ligado a um trabalho tão exigente e, de certa forma, incomum?
Nem sempre é fácil equilibrar os diferentes projetos em que estou envolvido, especialmente quando tenho em mãos problemas que exigem mais tempo do que o previsto para serem resolvidos devido a situações imprevistas. No entanto, tenho uma boa relação com os “technical officers” da ESA, o que me permite ajustar as alocações de tempo, tanto para mim quanto para minha equipa, se necessário. Por vezes, quando entrava de férias, certo tipo de tarefas ficavam penduradas à espera do meu regresso, pois mais ninguém na ESA sabia como as fazer. Para mitigar essa situação, tento partilhar e documentar o melhor possível os processos, “workaorunds” e tutorias com meus colegas.

O que é que Porto de Mós significa para si?
Costumo viajar para Portugal a cada três meses. Por norma sigo direto para a casa dos meus pais, no Alqueidão da Serra. Aí encontro a paz e sossego da serra, na companhia da minha família, conseguindo, assim, recuperar energias para enfrentar desafios futuros. Além disso, tenho ficado surpreendido com a qualidade dos circuitos pedestres espalhados pelo concelho. Gosto particularmente do percurso do jurássico, na Fórnea e o da Estrada Romana. O próximo na lista é o circuito do Castelejo. Costumo aproveitar as idas a Porto de Mós para cortar o cabelo na Martifá, pois ainda não encontrei um cabeleireiro consistente e ao mesmo nível aqui em Darmstadt.

Alguma mensagem que queira deixar aos mais jovens?
A mensagem que gostaria de transmitir aos jovens de Porto de Mós é que não desistam de procurar um trabalho ou atividade que os faça verdadeiramente felizes, onde o tempo passa ser darmos conta, seja ela qual for. Não acredito no conceito de multitasking, pois quem o faz está apenas a desperdiçar energia a mudar constantemente de contexto. Tornamo-nos especialistas na nossa área se nos concentrarmos em realizar uma tarefa de cada vez, sem distrações (principalmente notificações de telemóvel, chats e redes sociais). Recomendo a leitura de Ikigai – Os segredos dos Japoneses para uma vida longa e feliz de Héctor García & Francesc Miralles. Nesse livro é explicada em detalhe a filosofia de vida que procuro seguir.