Em Entrevista… Pedro Miguel Santos

Autor: | 13 Set 2022

Pedro Miguel Santos é “filho da terra”, natural da Corredoura, mas “dá cartas” – e que cartas – noutras bandas, mais propriamente em Lisboa. É um dos membros da equipa do Fumaça, um projeto de jornalismo independente sobre diversos temas da sociedade, investigados com tempo e pormenor. Além de nos falar do trabalho que realiza atualmente, fala de outras experiências pessoais e profissionais. Formou-se em Comunicação Social e Educação Multimédia na Escola Superior de Educação e Ciências Sociais do Politécnico de Leiria. Estagiou e trabalhou seis anos e meio na Visão e depois juntou-se a uma associação ambientalista. Entre os vários sítios pelos quais passou, inclui-se O Portomosense e a Rádio Dom Fuas, por isso, podemos dizer que também é “filho desta casa”.

Está agora de regresso às origens, sabe bem?
Sabe muito bem. Tenho uma ligação muito forte com a minha terra, a Corredoura, e vim agora para a festa. É muito bom voltar cá e é sempre um prazer muito grande ir tomar café ao clube da Corredoura, estar com a minha família, com os meus sobrinhos e com os amigos.

Partiu para Lisboa quando foi estagiar na Visão e depois ficou. Como foi essa experiência?
Foi boa e surpreendente, foi uma grande sorte ter acesso a este estágio e o curso tinha essa característica, proporcionar estágios em órgãos de comunicação social de âmbito nacional. Portanto, as pessoas que queriam mesmo prosseguir jornalismo, e não só jornalismo, outros ramos da comunicação, seja na publicidade ou nas agências de comunicação, tinham oportunidade. Isto é uma história engraçada, nessa altura não queria jornalismo, portanto disse à coordenadora de estágio que não ia para a Visão, que queria ir para uma agência de publicidade. Estava a fazer uma espécie de birra e achava que não ia ter trabalho, porque já era difícil, na altura, arranjar no jornalismo. Ela fez-me uma espécie de ultimato – “era o que faltava, vais para a Visão e acabou-se a conversa” – e tinha razão. Ainda no outro dia lhe agradeci, acabou por correr bem, até porque o estágio era uma componente importante do plano curricular, contava para terminar a licenciatura e fazia parte da nota. O que aconteceu foi: terminei o estágio, tirei um dia, fui abrir atividade nas Finanças para me registar como trabalhador independente e estive seis anos e meio na Visão a trabalhar como falso trabalhador independente. Esse foi o lado negro de trabalhar numa grande revista e é um dos grandes problemas do jornalismo, a precariedade, os falsos recibos verdes, não haver segurança laboral. Muitas pessoas associam o jornalismo ao jornalismo televisivo e à informação das 20 horas e pensam que toda a gente é o Rodrigo Guedes de Carvalho ou a Judite de Sousa, que têm ordenados milionários. Não, a maior parte dos jornalistas em Portugal são como operários de fábrica, trabalham numa redação, muitas horas, são explorados e ganham salários miseráveis.

Desmotivou-o?
Muito, muito, muito.

Mas enquanto profissão, apaixonou-o?
Completamente. Aprendi a ser jornalista na Visão, aprendi o melhor e o pior, o que se deve e o que não se deve fazer.

Uma boa escola, então?
Completamente, não tenho a menor dúvida. Aliás, ninguém aprende a ser jornalista nos bancos de uma universidade, não é? Aprende-se a ser jornalista fazendo, a trabalhar numa redação, com outros jornalistas, de diferentes formações, diferentes idades, discutindo os trabalhos que cada um está a fazer. Eu tive esse privilégio, de trabalhar na Visão, numa fase em que ainda havia uma grande redação, pessoas de várias idades que tinham visto e vivido muita coisa, pessoas que tinham vivido o 25 de Abril e outras, eventos históricos ainda mais antigos…

O que é que marcou na sua presença, enquanto estagiário, de forma a ter surgido o convite para ficar?
Bom, houve uma feliz coincidência, nessa altura a Visão estava com um plano de lançar uma série de extensões de marca, estava a ser lançada a Visão Verde, a Visão Viagem e mais uma série de outras submarcas. Era preciso lançar essas extensões digitais e, portanto, eu fui convidado para lançar, gerir e organizar a parte dos sites.

Houve alguma reportagem em especial que o tenha marcado?
Sim, não foi bem uma reportagem. Fez este mês 10 anos que entrevistei um senhor indiano que veio a um simpósio, organizado por uma comunidade que existe no Alentejo, a Comunidade Tamera. Era um médico que quando se formou foi com mais dois ou três amigos ajudar para uma determinada aldeia muito pobre, eles queriam ajudar essas comunidades e foram muito mal recebidos pelos anciãos da aldeia. Basicamente disseram “saiam daqui, nós não precisamos da vossa ajuda, não queremos os vossos medicamentos, nem os vossos cuidados, precisamos é de água”, porque o rio que passava nessa aldeia estava seco há mais de 60 anos e a água era a base de tudo, da agricultura, da vida. Eles ficaram muito ofendidos, veja-se bem o que é que era, expulsar os senhores doutores, acabados de chegar. Os amigos foram todos embora mas ele não foi e começou a falar com os anciãos, a perguntar como é que podia ajudar a trazer a água e os velhotes falaram-lhe de uma técnica antiga que se costumava utilizar para capturar a água das monções, um tipo de chuvas quase diluviais que caem num determinado período do ano durante três ou quatro semanas quase continuamente. Tinha de haver uma maneira de segurar aquela água, uma espécie de mini-barragens que se tinham deixado de fazer porque os homens tinham emigrado para a cidade à procura de trabalho. Ora, o que é que começou a acontecer? Este senhor começou a convencer as pessoas a voltar a fazer estas mini-barragens ao longo dos pequenos ribeiros e afluentes e o que é certo é que depois de fazer não sei quantas centenas ao longo de três ou quatro anos, um pequeno afluente começou a correr porque essas estruturas seguravam a água, permitiam que ela se infiltrasse e isso carregava os lençóis freáticos. Passados quatro anos, um rio que estava seco há 60, passou a correr outra vez. Acho que é uma história incrível, tendo em conta o contexto de alterações e de emergência climática em que vivemos, para nos mostrar que há um conjunto de ensinamentos e práticas ancestrais. Devíamos pensar como é que os nossos avós e bisavós geriam o território, a relação que tinham com os recursos, se calhar não precisamos de inventar máquinas que custam milhões de euros. Foi uma personagem, no bom sentido, muito inspiradora e que me marcou bastante.

Depois de sair da Visão teve um percurso ligado às questões ambientais, o que fez exatamente antes de entrar no Fumaça?
Eu despedi-me da Visão porque estava farto dessa situação de precariedade e fui trabalhar para uma associação de defesa do ambiente, o GEOTA (Grupo de Estudos do Ordenamento do Território e do Ambiente), para um projeto chamado Rios Livres, cujo principal objetivo era travar a construção do programa nacional de barragens, que tinha sido lançado pelo governo de José Sócrates e que continha um conjunto de projetos de barragens megalómanos, muitos deles inúteis, alguns envoltos num conjunto de “esquemas” que pareciam, à associação, casos muitos dúbios e que podiam ser considerados corrupção. Aliás, fizemos uma queixa à Procuradoria-Geral da República, eram 10 barragens no início, só cinco delas é que acabaram por ser construídas, porque muitas nem sequer tinham viabilidade económica.

Nessa altura entregou a carteira profissional de jornalista…
Sim, aliás, há uma incompatibilidade entre ser jornalista e desempenhar qualquer outro cargo relacionado com comunicação e com publicidade e, portanto, aquilo que qualquer jornalista minimamente ético faz quando quer fazer outra coisa qualquer é pegar na sua carteira profissional e entregar à comissão e quando deixa de ter outra profissão incompatível vai lá e volta a levantá-la. Eu nesse projeto, no fundo, estava a fazer comunicação e um dia recebemos um e-mail de um projeto, em podcast, chamado É Apenas Fumaça e queriam falar connosco precisamente sobre o trabalho que andávamos a fazer. Eu e a Ana Vazão, coordenadora do projeto, estávamos só os dois no início (2016), depois a equipa foi crescendo, fomos entrevistados, fomos explicar o que é que fazíamos, porque entendíamos que aquelas barragens não eram úteis ao país, ao ambiente. No final dessa entrevista, que achámos que tinha sido conduzida de forma muito profissional, por pessoas que, parte delas, não tinham estudado jornalismo, muito interessadas, que estudaram muito bem aquele assunto e que faziam muito bem o contraditório, aquilo reacendeu em mim a vontade do jornalismo.

Naquela forma de fazer as coisas…
Sim, e eu saí tão desiludido da Visão que, de alguma forma, quis convencer-me de que o jornalismo tinha morrido, não queria saber, estava de coração partido. Estava a mentir a mim próprio e, na verdade, sabia disso. Depois mandei-lhes um e-mail a dizer que os queria ajudar e fomos tomar um café e acabei por entrar para esse projeto que, na altura, era só de conversas, de grandes entrevistas, onde se falava durante o tempo que fosse preciso, até que se percebesse bem.

Trabalho voluntário?
Totalmente, era um grupo de malta nova que queria falar sobre religião, direitos humanos, migrantes, colonialismo, descriminação, racismo, temas que não têm esse peso e esse tempo na agenda mediática normal, nas grandes televisões e rádios.

Quando é que se começou a aperceber que havia muita gente interessada em ouvir estes podcasts?
Cada vez que se lançava uma entrevista, semana após semana, fomos percebendo que cada vez mais pessoas ouviam, que o feedback ia sendo cada vez melhor, que havia mais seguidores nas redes sociais, e o culminar disso foi termos feito uma candidatura a uma fundação internacional, chamada Open Society Foundation, que nos deu uma bolsa de apoio ao jornalismo independente, no valor de, se não me engano, 85 mil euros. Isso era a prova de que alguém (ainda para mais fazíamos tudo em português), percebeu que um grupo de pessoas, de forma voluntária, estava a fazer um trabalho de tal forma sério que merecia um apoio para se poder profissionalizar. O que aconteceu a seguir foi que nos despedimos dos nossos trabalhos porque se estava a tornar impraticável. Tivemos a filosofia de experimentar o que nos apetecia. Fazíamos entrevistas, cobríamos muitas manifestações, onde basicamente gravávamos sons ambiente e perguntávamos às pessoas: “Como é que te chamas? O que é que estás aqui a fazer? Descreve-me o que estás a ver à tua volta”. Isso era um exercício muito interessante porque eram muitas vozes diferentes, a descrever coisas diferentes, com justificações muito diferentes, experimentámos muitos formatos, queríamos fazer coisas muito diferentes. E estávamos a fazer tanta coisa, que a determinada altura tínhamos de facto dois trabalhos. Sempre fomos uma equipa, horizontal e ainda somos. São as pessoas que estão na redação que definem, controlam não só o destino da publicação, como o conteúdo daquilo que vai sair, determinamos o que é que vamos fazer, ouvimos as peças e editamos em conjunto.

Sentiram que os outros órgãos de comunicação social começaram a ir atrás daquilo que vocês fazem?
Não sei muito bem, sei que no início, antes de nos oficializarmos, não era muito bem visto o que fazíamos porque não estávamos oficialmente registados na Entidade Reguladora para a Comunicação Social. Mas já seguíamos regras jornalísticas, o código deontológico e dizíamos que fazíamos jornalismo. Em Portugal, há um conjunto de formalismos, ao contrário do que acontece no resto da Europa e no mundo em que, para se ser jornalista, não é preciso ter uma carteira profissional, então tínhamos uma série de pessoas da equipa que ainda não tinham a carteira profissional, por isso havia um desdém de que não éramos jornalistas. A partir do momento em que as coisas se tornaram oficiais e o Fumaça começou a ganhar não só bolsas de apoio, como prémios e distinções, já não usavam isso como argumento.

Vocês fazem jornalismo de investigação independente, que tipo de jornalismo é este?
Para começar, só trabalhamos com áudio e isso é uma grande diferença em relação àquilo que a maior parte das pessoas está habituada, porque o resultado final do que fazemos é só som.

É como na rádio, no fundo…
Exatamente, só que não é uma rádio em contínuo, não está sempre a passar.

É um podcast, vai-se lá e ouve-se quando se quer.
Exatamente. Fazemos uma espécie de séries, é como se fosse uma série da Netflix ou um áudio-documentário. Além de entrevistas densas e profundas que podem ter uma hora ou mais, além de reportagens, como as grandes reportagens que as pessoas veem na televisão e que podem ter mais de uma hora ou que podem ser divididas em dois episódios, estamo-nos a especializar em séries de investigação. A última que fizemos e que lançámos em janeiro de 2021, chama-se Exército de Precários e foi uma investigação que levámos dois anos a fazer sobre o universo da segurança privada. Essa série tem oito episódios, na verdade são 12 horas de áudio, quem quiser, devia ouvir. É certamente o melhor trabalho que fizemos, a próxima será lançada em setembro/outubro e vai ser sobre saúde e doença mental, sobre o que é que significa ter uma doença mental, fomos investigar porque é que uma coisa chamada Plano Nacional de Saúde Mental, que existe há quase 20 anos, está praticamente na gaveta, o que é que devia ter acontecido nos serviços, nos centros de saúde, nos hospitais e não aconteceu e andamos a fazer esta também quase há dois anos. Além disso, compomos bandas sonoras originais, toda a música que se ouve nessas horas é feita de propósito para cada minuto em concreto, para cada episódio. Todo o processo de edição é feito e partilhado pela equipa inteira: eu faço o primeiro episódio, escrevo-o, monto as coisas e depois partilho com a equipa. A equipa toda ouve e depois diz-me “não percebi esta parte, acho que isto não resulta, se calhar devíamos trocar este parágrafo pelo outro, não faço ideia do que significa aquela palavra”, porque a pessoa que investiga já está a fazer aquilo há dois anos e já se habitou aos termos técnicos, mas outras pessoas da equipa não e ouvem como se fossem as pessoas lá em casa.

Para terminar, o que estão a fazer atualmente?
Neste momento estamos com três séries, uma sobre saúde mental, outra sobre violência policial – o que significa ser polícia em Portugal – e outra sobre presos e prisões, o que é que se passa dentro do muro das prisões. O que estamos a tentar perceber é, não só o ponto de vista das pessoas que estão presas, mas também o que significa ser guarda prisional, como é que funciona o sistema, se o sistema cumpre o que está escrito na lei.

Edição | Jéssica Moás de Sá
Foto | Joana Batista – Fumaça

Entrevista completa realizada no programa “Conta-me Histórias” de Maria João Novo. Agora disponível em podcast em radiodomfuas.pt