«Ninguém está livre de ter um acidente de carro, de ter uma doença do dia para o outro, e se eles [a classe política] precisarem de acessos como eu e também não tiverem… não se preocupam se amanhã precisarem». As palavras são de Ana Oliveira, de 48 anos e de 90 centímetros de altura. O alvo é o atual executivo (da Junta de Freguesia de Mira de Aire, onde reside desde os 14 anos, mas também da Câmara Municipal de Porto de Mós), a quem aponta o dedo quando questionada se a sua condição motora é exacerbada pela falta de condições urbanísticas ou pelas barreiras arquitetónicas do concelho, sobre as quais é esclarecedora na resposta: «Não há acessos nenhuns para mim».
Quando sai de casa, o mundo é mais alto que ela, e as infraestruturas não ajudam. Quando anda de transportes públicos, nomeadamente o serviço municipalizado Vamós, tem de se «ajoelhar para subir para o autocarro». Quando quer ir às compras, tem «de andar sempre a pedir aos funcionários para porem as compras no tapete». Quando quer ir ao banco, tem pela frente uma longa escadaria. Quando quer levantar dinheiro, os balcões são altos demais. São situações reais e que desde sempre existiram na vida de Ana Oliveira, que se considera uma pessoa «bastante revoltada » e «que não se cala». Até porque ela já tem as soluções: «Eu já as apresentei e eles [a classe política] não querem saber», reforça novamente em conversa com O Portomosense. Para os autocarros, um «degrauzinho como têm as ambulâncias». Para o multibanco, um outro degrau, amovível, este que até já foi pedido ao presidente da Junta de Freguesia local, Alcides Oliveira, mas, nas palavras da mirense: «Ele não quer, ainda se ri na minha cara, não quer saber disso para nada. Já falei também sobre o degrau ao presidente da Câmara de Porto de Mós e eles estão coligados um com o outro e não fazem nada». É um sentimento de injustiça que a premeia, principalmente quando se fala de Mira de Aire («porque é onde eu vivo e os que mandam aqui não fazem nada por mim»), zona onde diz nada ter mudado nos últimos 34 anos.
Em resposta, Alcides Oliveira refuta as acusações da mirense, admitindo contudo que se reuniu há cerca de três meses com Ana Oliveira sobre essa e outras questões. O presidente explica também que as instalações da caixa multibanco, «embora estejam na Junta de Freguesia», foram mandadas instalar pelo próprio banco, com quem ficou de comunicar a situação – embora ainda não o tenha feito, alegando que ainda não teve «oportunidade». Já sobre as circunstâncias da própria vila em questões de mobilidade, Alcides Oliveira admite que esta não tem condições «a 100%, uma história que vem de há muitos anos atrás e que agora para reverter, as Juntas de Freguesia não têm orçamento para fazer uma obra dessas num curto ou médio prazo de tempo».
O Portomosense procurou também questionar o presidente da Câmara de Porto de Mós, Jorge Vala, com quem Ana Oliveira diz também já ter procurado chegar à fala. Através do Gabinete de Comunicação da Câmara, Jorge Vala admitiu ao nosso jornal ter conhecimento da situação após conversa com Alcides Oliveira, mas rejeita que a mirense tenha feito qualquer pedido ou agendado qualquer reunião sobre o tema.
Muitos exemplos para muitas dificuldades
Por outro lado, a presidente da delegação de Leiria da Associação Portuguesa de Deficientes, Maria José Ruivo, da Corredoura, acredita que «tem-se vindo a registar uma maior preocupação em tornar o concelho de Porto de Mós mais acessível e inclusivo». Também ela portadora de uma deficiência motora, consequência de poliomielite na infância, dá exemplos como a requalificação do Castelo ou a requalificação/construção de passeios e passadeiras na via pública. Ainda assim, prevalecem os exemplos contrários: degraus sem corrimão, passeios não rebatidos, espaços de atendimento ao público com degraus/rampas demasiado inclinadas e «falta de estacionamento junto a alguns serviços, caso da Segurança Social e Finanças, por exemplo». Os que já existem também não são sempre fiáveis, «devido à falta de espaço para abertura da porta e ou a transferência para a cadeira de rodas».
Os exemplos são muitos, as dificuldades, mais. A legislatura já prevê, pelo menos desde 1997, que sejam feitos ajustes nos espaços públicos. A primeira lei acabou prorrogada em 2006 e está ainda em vigor, segundo a página online do Diário da República, com algumas alterações. Mas essa mesma lei parece não proteger assim tanto os que efetivamente sofrem com a sua mobilidade reduzida. Caso do alqueidoense Raúl Carreira, de Covão de Oles, que, aos 58 anos, reclama que há alguma «falta de informação» sobre os seus direitos, embora confesse em simultâneo que «nunca foi uma daquelas pessoas de ir pedir». Substituiu a perna esquerda por uma prótese aos 18 anos, após um acidente de motorizada, mas, ainda assim, evita, se possível, deixar o carro no estacionamento para pessoas com deficiência: «Se eu puder deixá-lo ao lado, vou deixá-lo ao lado, que é para não ficar a ocupar para outro que venha e que precisa mais do que eu», conta a O Portomosense. Principalmente quando se dirige a Leiria, explica ainda, já que não frequenta muito «a parte da vila de Porto de Mós». Pudera: «Não ando para os lados da Câmara e do Tribunal, para mim é mais complicado porque o terreno é torto e não há aquelas acessibilidades», explica, reforçando que a calçada portuguesa que alegra as ruas portomosenses «é às vezes um bocadinho alta e é preciso ter cuidado». Mas, regra geral, «iria na mesma».
Raúl Carreira, tal como Ana Oliveira ou Maria José Ruivo, teve de arranjar soluções “à sua maneira”, estratégias para se adaptar num espaço que não se adaptou ainda totalmente a ele: «Não vou deixar de ir por causa disto. Se eu for a um lado qualquer, tento sempre procurar ficar mais perto de maneira a eu poder andar. Isto é como tudo. É como a gente ir à Nazaré, eu vejo às vezes as pessoas com dificuldades “Ei, eu tenho que deixar o carro em certo lado”. E eu, se fosse comigo? Eu estava tramado com a minha vida. Nunca mais ia para onde eu queria ir».
Fotos | Bruno Fidalgo de Sousa