É um verdadeiro três em um. O Grupo de Autorepresentação do Centro de Atividades Ocupacionais (CAO) do polo de Porto de Mós da Cercilei está a promover uma campanha de solidariedade que quase se pode dizer que não é uma mas três em simultâneo já que, sendo a mesma, se divide em três ações distintas, mas que se complementam.
Assim, o grupo constituído por cinco utentes do CAO e por um colaborador, o psicólogo Ricardo Vinagre, em representação do conjunto de 30 utentes, está a organizar uma angariação de mantas e de agasalhos, bens alimentares e brinquedos. As mantas e agasalhos serão entregues à Comunidade Vida e Paz, instituição que acompanha pessoas sem-abrigo ou em situação de vulnerabilidade social. Os bens alimentares serão distribuídos por famílias do concelho em situação frágil, e os brinquedos ficarão “à guarda” da Comissão de Proteção de Crianças e Jovens de Porto de Mós para que depois os distribua pelas crianças que acompanha.
Quem quiser colaborar nesta iniciativa solidária, que termina no início da semana de Natal, tem três locais onde pode deixar qualquer um destes tipos de bens: Câmara Municipal, Junta de Freguesia de Porto de Mós e Cercilei (Porto de Mós).
O grupo de autorrepresentação agradece, desde já, a colaboração de todos e deixa um apelo: «aquilo que entregarem, que esteja em bom estado de conservação. A ninguém é exigido que entregue produtos novos, apenas que estejam em boas condições. A nossa intenção não é angariar muitas coisas mas o que oferecermos em nome da comunidade portomosense tenha qualidade para se poder dar a alguém».
Esta campanha levada a cabo pelos jovens da Cercilei é, na aparência, idêntica a tantas outras que abundam nesta altura do ano, no entanto, e lá diz o povo, «as aparências iludem» e este é o caso. O grupo de autorrepresentação ao mesmo tempo que está a ajudar o próximo está também a contribuir para o autodesenvolvimento dos seus elementos e para que o cidadão portador de deficiência passe a ser visto sob um novo olhar por parte da comunidade. Para percebermos o que é um grupo de autorrepresentação, aquilo por que “luta” e a importância desta campanha nesse contexto estivemos à conversa com Ricardo Vinagre. Eis um resumo da mesma:
De uma forma simples, o que é um grupo de autorrepresentação?
[Dentro de instituições como a Cercilei] É como se fosse uma amostra de pessoas em que são trabalhadas competências no âmbito da cidadania, da autonomia e da independência. A ideia é que este grupo possa representar todos os elementos que integram o CAO, nomeadamente que possa (em seu nome) dar opiniões, reclamar, sugerir, tomar decisões e saber justificá-las sem a intervenção de terceiros. O objetivo não é que façam aquilo que a pessoa que está com eles lhe diz para fazer. O meu papel é capacitá-los para que consigam ter capacidade para argumentar, se o quiserem fazer e não aceitar as coisas apenas porque o cuidador o diz.
Esta capacitação é para saberem lidar com as questões internas da instituição mas também com as situações do dia a dia, presumo…
Sim, neste caso em específico para se chegar até aqui a iniciativa teve de ser discutida, organizada e trabalhada e para isso. Houve fornecimento e confronto de informações, discussão de ideias e uma série de outras variáveis numa tentativa de capacitação e da demonstração de competência de cada um deles para decidir, argumentar, organizar e gerir. No final, os membros do grupo vão fazer a avaliação de tudo isto, ver onde falhámos, o que podemos e não podemos fazer numa próxima ocasião, onde temos que melhorar e aquilo que correu bem. No fundo, cada um vai fazer o que qualquer cidadão do mundo faz todos os dias: analisa as situações com que se depara, toma uma decisão em função disso, assume as respetivas consequências e tenta tirar daí os devidos ensinamentos.
O papel de organizações como a Cercilei tem de ser este: a nossa obrigação é capacitar. Mais do que promover atividades para a pessoa portadora de deficiência, se queremos mudar alguma coisa temos de capacitar as pessoas que estão aqui connosco e nada melhor para o fazer que situações práticas em que todos vejam que há um retorno como é o caso desta campanha de solidariedade.
Capacitar é a palavra de ordem?
Sim. Uma das coisas que as pessoas confundem é autonomia com independência, nós podemos ser autónomos e não ser independentes e pedir a uma pessoa que decida entre duas hipóteses não é a mesma coisa que lhe dar liberdade para fazer aquilo que achar melhor para si. Por outro lado, quando falamos em liberdade da pessoa com deficiência o que verificamos é que esta está um bocadinho condicionada no acesso a serviços mas também aos direitos e aos deveres. Existe ainda muito a capacitação para a dependência e, por exemplo, os jovens a quem damos assistência, todos eles adultos, precisam na maioria das vezes da autorização dos pais para participar numa qualquer atividade. Apesar do nosso esforço para que haja autonomia e poder de decisão ainda estão muito dependentes do outro.
Estes jovens têm cartão de cidadão, número de contribuinte e de Segurança Social como qualquer um de nós e temos de começar a exigir que os seus direitos (e deveres) sejam respeitados como tal mas para exigir temos de os capacitar, torná-los menos dependentes.
É frequente a sociedade associar um utente de um CAO a uma pessoa com limitações cognitivas impeditivas de fazer aquilo que costumamos designar por “vida normal”. Trata-se de mais uma ideia falsa e preconceituosa?
Sim. A pessoa portadora de deficiência tem capacidade de pensar e de refletir, pode é chegar lá de uma forma a que o cidadão comum não esteja habituado. Além disso, qualquer pessoa processa a informação de um modo único, não há duas formas iguais. Neste caso, a nossa grande preocupação é que a mensagem e a forma como a transmitimos seja mais simples e prática, com coisas mais do dia a dia para que eles se tornem menos dependentes e mais ativos no âmbito da cidadania.
Para atingir esses objetivos é necessário trabalhar também com as famílias?
Sim, a nossa ideia em termos de grupo é também capacitar os pais, de forma gradual, para que as tomadas de decisão sejam deles, depois de avaliadas e refletidas em conjunto… É claro que não podemos olhar para todos com a mesma bitola mas quem tem competências de decisão, quem tem capacidade para avaliar se vai ou não a determinado sítio e quais as consequências do ir, deve ter a possibilidade de a exercer. É claro que eu percebo os medos dos pais (e das próprias instituições) mas o caminho deve de ser este. Por vezes, tomamos as decisões por eles com medo das consequências e para que outros não nos possam apontar o dedo (já basta como nos olham por termos um familiar portador de deficiência…), mas é algo que temos de mudar.