«Não estamos livres de ter outra vez ditaduras na Europa, no mundo, e até mesmo em Portugal». O aviso foi deixado por Irene Pimentel, logo a abrir a conferência Controlo, vigilância e repressão: o caso da PIDE, que proferiu no passado dia 31 de março, na Central das Artes, em Porto de Mós, no âmbito do Ciclo de Conferências Ditadura e Democracia: que História? Que Presente? Que Futuro?, integrado no programa das comemorações dos 50 anos do 25 de Abril 2022-2024, promovido pelo Município de Porto de Mós. «Eu pensaria que chegando ao “outono” ou quase “inverno” da minha vida não viveria este perigo de poder haver novamente ditaduras e, também, uma guerra em pleno espaço europeu. Ora, é o que está a acontecer», disse a historiadora e investigadora do Instituto de História Contemporânea da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade de Lisboa, dirigindo-se à cerca de meia centena de pessoas que preencheu por completo a sala.
Aquela que é reconhecida como uma das investigadoras que mais estudou a história da PIDE/DGS explicou a origem e o contexto em que foram criadas as polícias políticas durante a Ditadura, com especial enfoque para as mais importantes e duradouras – PIDE e DGS –, bem como a forma como atuavam e os métodos a que recorriam. Deixou informações e pormenores desconhecidos de muitos mas a declaração inicial acabaria por marcar toda a conferência.
Irene Pimentel dedicou grande parte dos cerca de 40 minutos de intervenção ao tema que a trouxe a Porto de Mós, mas ao longo das duas horas da sessão, respondendo a vários elementos do público, teve a oportunidade de explicar melhor o que a leva a defender que o risco de aparecimento de ditaduras na Europa, Portugal incluído, existe e não pode nem deve ser desvalorizado. «Neste momento, o grande perigo, aquilo de que devemos ter medo, não será de um golpe de estado militar. Muito mais problemática é a forma como dentro da Democracia e usando os mecanismos desta, certas pessoas e determinados movimentos populistas de extrema-direita, xenófobos e racistas estão a tentar chegar ao poder ou já lá chegaram e sempre por eleições», afirmou, dando como exemplos, Donald Trump (EUA), Jair Bolsonaro (Brasil), Viktor Orbán (Hungria) e Benjamin Netanyahu (Israel).
Portugal, no seu entender, também não está imune a estas tentativas, afirmando a historiadora que «é verdade que vivemos numa democracia, mas também temos no nosso seio um partido que está a crescer e bastante e que está na Assembleia da República e vai querer destruir a democracia», porque, sublinha, «não tenham dúvidas, Trump, Bolsonaro, Orbán e outros como eles chegaram lá por meio democrático, mas querem-na destruir. Conseguem-no fazer? Por enquanto parece que não, mas nada está garantido, é uma luta diária», realçou.
“A democracia nem sempre se dá ao respeito”
No decurso da conferência, a investigadora explicou que «as ditaduras não nascem de um momento para o outro. Normalmente há todo um caminho de várias etapas que é prosseguido pelos ditadores» e, depois de lá chegarem, há também ações que se repetem. No caso dos líderes internacionais que apontou como exemplo de inimigos da Democracia, identifica, de imediato, atuações comuns: primeiro «o ataque à imprensa que não lhes é favorável e, depois, ao aparelho da Justiça, dizendo que a querem reformar».
Voltando ao caso português, Irene Pimentel disse que «muitas vezes a Democracia não se dá ao respeito porque permite determinados discursos de ódio na Assembleia [da República] e, por vezes, não há grandes reações a isso». Por outro lado, «também não se dá ao respeito quando elimina dos currículos a História e a Filosofia que são aquelas grandes cadeiras que deviam ir até ao final do liceu». A docente universitária lembrou, a propósito, que «apesar da História não se repetir é muito importante conhecê-la e saber o que é que aconteceu quando certa pessoa fez determinada coisa. Por exemplo, quando Hitler começou a tirar os judeus do espaço público, aquilo foi só uma etapa e as pessoas permitiram-no e então avançou para a segunda, expulsá-los do território alemão, e as pessoas voltaram a permiti-lo, até que acabámos no Holocausto (Shoá)», frisou.
Em resposta a um grupo de jovens professores que a questionaram sobre quais os valores que deviam transmitir às crianças, suas alunas, «para que estas situações não se voltem a repetir», disse que devem ser «os da Democracia, dos direitos humanos, da universalidade, anti-racistas e anti-xenófobos», incentivando-as também a exigir de quem trata da Educação em Portugal «que dê importância à História e à Filosofia, que são tão importantes como as matemáticas».
Questionada pelos mesmos se considera a reescrita de livros, de que agora muito se ouve falar, como um ato de censura, foi perentória: «Para mim é claríssimo, é um ato de censura e eu sou completamente contra. Muitos dizem que os próprios escritores também reescrevem as suas obras. Está bem, mas essa reescrita é feita pelo próprio autor. Agora quando não o é, quem é que tem o poder da reescrita? Alguém foi eleito para isso? Eu li a obra toda de Enid Blyton, não foi por isso que me tornei racista ou anti-racista e também não é por aí que, enquanto mulher, acho que a minha missão é fazer scones ou sanduíches» acrescentou. «Temos de ter a noção do contexto em que aquelas coisas foram escritas e ainda bem que ainda hoje não consideramos aquilo correto, agora não é reescrever o que já aconteceu. Isso será a mesma coisa que apagar a história e a memória, é dizer que a partir de agora não houve Hitler, não houve guerras, não houve nada porque é tudo hediondo. Claro que é hediondo mas por isso mesmo temos de saber que aconteceu», concluiu.
Fotos | Isidro Bento
Discurso direto
«Não há ditadura sem polícia política. Pode haver mais ou menos censura mas a polícia política está sempre presente para se virar contra os adversários do regime ditatorial.»
«Os grandes pilares do Estado Novo foram as Forças Armadas e a Igreja Católica. A PIDE não é o principal pilar, mas aquele último instrumento que neutralizava os principais adversários políticos.»
«A censura portuguesa foi das mais longas a nível mundial.»
«Havia a ideia que Portugal estava cheio de informadores e é verdade que havia muitos por todo o lado, mas era a própria PIDE/DGS que queria fazer passar essa imagem de que era omnipotente e omnipresente.»
«A PIDE/DGS dirigia-se às grandes empresas privadas e públicas para lhes oferecer os seus serviços de informação e o dinheiro que estas pagavam ia para um “saco azul” clandestino e ilegal que servia para pagar aos informadores.»
«Temos dos melhores arquivos da polícia política de toda a Europa.»
«A PIDE não prendia só. Quem quisesse ir para a função pública tinha de passar no seu crivo, era esta que dizia se determinada pessoa podia ir para médico, professor ou funcionário público e isto, num país já de si miserável, podia representar o desemprego ou a necessidade de emigrar.»