As Sombras de uma Azinheira – assim se chama o livro de Laborinho Lúcio, ex-ministro da Justiça, jurista e escritor (entre muitos outros cargos), que foi o mote para uma apresentação e conversa promovida pela associação Amigos das Letras, das Artes e da Cultura de Alcobaça – ALMA, em parceria com a Biblioteca Municipal de Porto de Mós e o Município. Este livro tem como linha temporal os 45 anos que antecederam e os 45 anos que sucederam o 25 de Abril e, por isso, foi mais uma das iniciativas inseridas no programa de comemorações do Dia da Revolução deste ano. Depois da coordenadora da Biblioteca, Margarida Vieira, ter apresentado um pouco da carreira do autor, foi a vez do vereador da Cultura, Eduardo Amaral, abrir as hostes: «É uma honra poder receber este convidado ilustre e é muito bom podermos estar aqui a apresentar um livro sobre o 25 de Abril, numa altura em que o Município também tem vindo a discutir das mais variadas formas este dia». O também vice-presidente do Município salientou que «incentivar a leitura e a escrita» tem sido um papel da Biblioteca e garantiu que as portas «estão abertas» para receber mais autores, nomeadamente «emergentes, do concelho»: «Queremos acarinhar projetos futuros», garantiu.
Com Fernando Barroso, membro dos Amigos das Letras, na moderação, Laborinho Lúcio explicou aos presentes como nasceu este livro. «Já tinha escrito três romances anteriores e quando caiu a pandemia, fiquei fechado em casa, o que me causou uma perturbação grande e resolvi “vingar-me” e escrever este livro nesse período», recordou. «Dei-me conta que se lançasse o livro no período que estabeleci, lançaria 48 anos pós 25 de Abril quando a Democracia tinha os mesmos 48 anos que teve o período da Ditadura», explicou Laborinho Lúcio. O escritor queria que este fosse «um estímulo para a reflexão dos 50 anos do 25 de Abril» porque, para si, «como cidadão e não como autor do livro, a grande comemoração dos 50 anos do 25 de Abril é comprometermo-nos a refletir sobre o que devem ser os 50 anos a seguir a estes». «Deve haver festa, claro, mas a grande celebração está em saber o que foram estes 50 anos e o que temos que fazer para nos comprometermos com os 50 que vêm aí, se vão ser aquilo que queremos que sejam ou o que nos impuserem», reforça. Ainda assim, sublinha Laborinho Lúcio, isto é apenas «o bastidor, o que levou o autor a escrever o livro», e não faz dele um ensaio político, «é um romance».
Revolução no centro do enredo
O livro divide-se em duas partes (com um intervalo declarado pelo meio) em que a data 25 de abril de 1974 é precisamente o meio, sendo que a história se desenrola nos 45 anos antes desta e nos 45 anos depois. «Temos um casal, marido e mulher, o João Aurélio e a Maria António, com cerca de 45 anos quando acontece o 25 de Abril e que têm uma característica e dois desejos profundos. A característica é que são ambos comunistas e os desejos é que querem ver cair o regime e querem ser pais», revela Laborinho Lúcio. No dia 25 de abril de 1974, os dois sonhos estão prestes a concretizar-se: «A Maria António diz ao marido que está prestes, o leitor não percebe logo o quê, mas depois entende que a mulher está quase a dar à luz e eles seguem a caminho de Lisboa, quando começam a ouvir na rádio o Grândola, Vila Morena e apercebem-se que o regime vai cair», continua a descrever o autor. Estavam prestes a concretizar os dois desejos, mas Maria Antónia morre no parto. «É aqui a grande divisão entre os 45 anos antes e depois», explica. É neste momento que o autor «celebra um pacto com o leitor»: «Acerto convosco que a mulher morreu no parto e, por isso, o marido volta para a aldeia e já não quer saber de nada. Ele entende que todos os sonhos eram para acontecer com a mulher e desiste de tudo», avança.
A filha de João Aurélio e Maria Antónia, que neste dia nasceu, a Catarina, cresce com os tios em Lisboa e é sob o seu ponto de vista que decorre a segunda parte do livro. «Os primeiros 45 anos antes do 25 de Abril são contados pelo pai na aldeia e os outros 45 pela filha, a viver em Lisboa», esclarece o escritor. De um lado «temos um pai fechado em si próprio», do outro temos uma mulher «cheia de dúvidas sobre si mesma, sobre quem é, sobre o seu nome». «A Catarina é lésbica e não é para o autor dar um ar “modernaço” nem porque ela tenha tido problemas com isso na relação com os outros, mas teve com ela própria, em relação aos sentimentos que tinha, nomeadamente em relação aos rapazes». Tal como Portugal «se estava a descobrir» no pós 25 de Abril, também o mesmo se passou com esta personagem.
“Quero saber quem tem o poder de decisão”
A apresentação do livro abriu mote a uma discussão profícua entre os presentes e o autor, onde, como era objetivo de Laborinho Lúcio, se refletiu sobre o futuro. Assumindo que estas personagens trazem «dúvidas e inquietação», sobretudo Catarina, o ex-ministro recusa-se «a comparar o país que fomos e o que somos». «Comparar para decidir o que é melhor, é uma indecência, podemos sim comparar o país que somos com aquilo que queremos ser, mas não com um período em que o poder de decisão estava apenas em alguns», salienta. Dando exemplos da realidade, Laborinho Lúcio falou sobre a transição digital e inteligência artificial: «Eu sou completamente a favor, mas quero saber quem tem o poder de decisão e quero que todos tenham esse poder», afirma.
O autor evidenciou ainda a «extrema fragilidade» da Democracia. «Por isso é que temos de a cuidar bem, é evidente que os regimes antidemocráticos são mais eficazes, porque alguém diz o que fazer e nós, que andamos agitados com o dia-a-dia, queremos simplicidade, a Democracia é complexidade», reitera. «Mas é isso que queremos, alguém que nos diga o que fazer?».
Sinopse do livro
Não é uma madrugada como as outras, aquela em que vai nascer o primeiro filho — ou a primeira filha — de Maria Antónia e João Aurélio: é a que muitos esperavam e agora começa a tomar forma nas movimentações das tropas pelas ruas de Lisboa e do Porto. Haverá um antes e um depois desta «manhã inicial», em que nasce a criança e renasce um país de um longo período de trevas.
Mas a almejada revolução e a vinda do bebé perdem todo o significado para João Aurélio no momento em que se cumprem: Maria Antónia morre no parto, deixando o marido e companheiro de luta desolado e definitivamente distante da vida dos vivos. Enquanto a criança é acolhida e criada pelos tios (a irmã de João Aurélio e o marido) e Portugal dá os primeiros passos numa nova existência democrática, João Aurélio, o antigo militante, o utópico, mergulha no isolamento e na loucura, na obsessão do passado e da morte. Catarina cresce longe do pai, procurando saber quem realmente é, no que faz e se propõe fazer, com tudo o que isso implica: liberdade, incerteza, contradição, dúvida, risco. Em paralelo, a jovem vida em democracia do país procura desenvolver-se, libertando-se dos seus atavismos históricos e de um passado idealista.
Portugal, nos quarenta e cinco anos que antecederam o 25 de Abril, contado através da história familiar e política de João Aurélio; e Portugal, nos quarenta e cinco anos que se seguiram à revolução, narrado pelo percurso indagador de Catarina. Entre estas e muitas outras personagens extraordinárias — e a inerente diversidade de olhares e perspetivas, passados e presentes — se conta a história da cisão entre pai e filha e a da relação entre a «azinheira» e as suas sombras.
Fotos | Jéssica Moás de Sá