Manuel Ladeiro, 85 anos, é visto por todos que o conhecem como um exemplo e é também assim, sem falsas modéstias, que se reconhece a si próprio. Exemplo, pela postura perante a vida recusando-se a um envelhecimento sentado no sofá ou num qualquer banco de jardim, mas também, na opinião de muitos, pela forma cordial, educada e de respeito com que lida com todos. E é em cima de uma bicicleta que Manuel Ladeiro demonstra tudo isto. Sim, porque é aí que passa várias horas do seu dia, num hábito que não é de agora nem fruto de uma qualquer moda. Trata-se de uma prática de décadas e que este “jovem” do alto dos seus 85 anos, se recusa a interromper enquanto a saúde lho permitir e é na estrada, no contacto com quem partilha consigo o alcatrão, que deixa bem vincados alguns dos seus valores.
Da sua recheada história de vida há um aspeto que mais surpreende por aquilo que representa como exemplo de força de vontade e de resiliência: os muitos milhares de quilómetros percorridos em cima de uma bicicleta e aqueles que ainda quer percorrer fintando os anos e uma ou outra mazela próprias de quem conta com “mais de 80 mil quilómetros de vida” como diria, bem-disposto, outro distinto portomosense.
Susto com a saúde não afasta Manuel Ladeiro da bicicleta
Manuel Ladeiro nasceu em Alvados, em 1935. Casou aos 25 anos e foi viver para Mira de Aire já que era aí, numa das fábricas de têxteis que trabalhava, a sua esposa. Passados cinco anos foi para França “a salto”. Regressou três anos depois «mas como isto não estava muito famoso» ingressou numa nova aventura, desta feita tendo a Alemanha como destino. Por lá viveu e trabalhou durante 14 anos. O regresso, com a esposa, aconteceu em 1983. Os filhos ficaram e alguns ainda hoje lá vivem.
Abriu um minimercado e a vida corria-lhe bem mas não se sentia totalmente satisfeito. Começou a engordar, sentia-se «barrigudo» e como, ocasionalmente, já andava de bicicleta, encarou essa prática como solução para emagrecer. «Esforçava-me muito na bicicleta e comecei a gostar. Passei a ir a muitos passeios de cicloturismo, tenho ali gavetas cheias de medalhas e de prémios de presença e ainda hoje estou inscrito na federação», diz. Apesar dos milhares de quilómetros percorridos, no seu currículo conta apenas com uma prova realizada. A razão é simples: nunca andou em competição com os outros mas consigo próprio. A satisfação não era, nem é, lutar por lugares de pódio mas ultrapassar os desafios com que se depara ou as metas que estabelece para si mesmo.
E não se pense que a opção pelo cicloturismo em detrimento de provas de estrada tem algo a ver com uma eventual “falta de pernas”. Não, pedalada foi coisa que nunca faltou nem falta a Manuel Ladeiro. Durante algum tempo integrou a equipa de ciclismo da Casa do Benfica de Mira de Aire, pedalando lado a lado «com rapazes mais novos» e não consta que alguma vez tenha ficado para trás. «Fazíamos cento e tal quilómetros, eles gostavam e sabiam que eu aguentava a volta» conta este sportinguista que, apesar disso, nunca se envergonhou de vestir o equipamento do clube adversário:«Nunca vesti roupa tão boa como aquela e havia alguns que sabiam que eu era do Sporting e me perguntavam se não tinha vergonha de andar com aquele equipamento e eu respondia que a cavalo dado, não se olha o dente», conta bem-disposto.
No decorrer destas andanças, teve um período de tensão arterial elevada. Por vontade do seu médico, conta, os passeios de bicicleta ficariam por ali mas como se tratou de um conselho e não de uma ordem, o nosso ciclista ouviu, com o respeito de sempre, mas decidiu que ainda era cedo para “arrumar as botas” e lá continuou, não em grupo mas a título individual. Mais tarde, o susto foi maior. Vários micro AVC fizeram-no tremer mas não foram suficientemente fortes para o fazer cair. Passado algum tempo estava de volta à estrada e é aí que se sente verdadeiramente bem.
Hoje, aos 85 anos de idade, faz todos os dias passeios de 50 a 60 quilómetros de bicicleta e não se pense que é em piso plano. O percurso não é igual todos os dias mas passa muitas vezes por sair de Mira de Aire em direção a Porto de Mós, depois Batalha e a seguir Reguengo do Fetal acima em direção a Fátima. Daí desce para Minde ou para a Moita do Martinho (em direção a São Mamede). Pelo caminho vai encontrando pessoas que o saúdam e admiram apontando-o como um exemplo. Manuel também há muito que grangeou o respeito dos condutores que o encontram com frequência e elogiam a sua postura na estrada, bem como dos muitos ciclistas, alguns com idade para serem seus netos, com quem se vai cruzando e que amiúde, nas zonas de paragem, o procuram para conversar ou fascinados com o seu exemplo de tenacidade, lhe oferecem um café.
Um amor para a vida
Para este ciclista sénior, andar de bicicleta é não só um prazer mas também uma forma de preservar a saúde e por isso confessa que naquelas ocasiões em que a vontade de sair de casa não é tanta ou tem afazeres que poderiam servir de desculpa a um dia sem bicicleta, ele próprio se obriga a ir e já na estrada o pedalar acaba por ter o gosto de sempre. «Dá-me vida, sinto-me rejuvenescido» sublinha e é por também sentir isso que toda a sua família o apoia. Ambos têm noção dos riscos mas mesmo assim consideram que os benefícios físicos e psicológicos são maiores. «Antes da pandemia tive meses de fazer 2500 quilómetros e eu próprio me surpreendo porque para uma pessoa com 85 anos fazer esta volta e subir ao Reguengo do Fetal sem nunca pôr o pé no chão é uma coisa quase impossível mas durante um ano foi o que fiz», realça.
Noutros tempos, era comum levantar-se de madrugada e percorrer 130 ou 140 quilómetros num dia. A cidade mais distante que visitou foi a Figueira da Foz mas no seu currículo conta com, pelo menos, três passeios que ligaram as Caldas da Rainha a outras tantas cidades espanholas, feito comprovado pelos pratos de cerâmica que, orgulhosamente, tem expostos num dos móveis de sua casa. Até hoje já teve cinco bicicletas, quase todas próprias para ciclismo. Depois de ter experimentado uma, nunca mais quis outra coisa já que são muito mais leves e melhor equipadas.
Sustos na estrada, volta e meia apanha alguns porque os condutores nem sempre respeitam os ciclistas, mas acidentes, que se recorde, só teve um e, felizmente, sem grandes mazelas para o próprio. Já da bicicleta não se pode dizer o mesmo.
Disciplinado por natureza, Manuel Ladeiro, dá asas à sua paixão mas esta ocupa-lhe apenas metade do dia. Sai relativamente cedo mas nunca sem que a esposa tenha o pequeno almoço e a medicação tomados. Regressa, por norma, perto da hora de almoço e de tarde dedica-se ao amanho de um pequeno terreno que tem no interior da sua propriedade e a cuidar de algumas ovelhas. “Parar” é palavra que não entra no seu léxico. Quanto muito abranda a atividade mas passar um dia, sentado, sem fazer nada, é coisa que, diz não conseguir fazer. Quanto a largar a bicicleta, para já é algo que também não faz parte dos seus planos. Para Manuel Ladeiro, pedalar, mais que uma paixão, é um amor alimentado durante muitos anos e com muito carinho e, como todos sabem, ainda há amores para a vida inteira.