Isidro Bento

Não, obviamente, não vamos ficar todos bem

1 Jun 2020

Não, obviamente, não vamos ficar todos bem

by | 1 Jun 2020

Desde que a pandemia por COVID-19 chegou a Portugal e como bons seguidores de modas, importámos a célebre e motivadora frase “Vai ficar tudo bem”. O lema é simples, motiva, e vem acompanhado de um arco-íris catita, uma ótima desculpa para colocarmos as criancinhas a desenhar e a pintar e depois a colocar a sua obra de arte à janela da sala, do quarto ou à porta de casa, um verdadeiro dois ou três em um.
A adesão à frase que se tornou “viral” não tem, em si, nada de mal. Nós próprios aqui em O Portomosense também, a seu tempo, a usámos enquanto elemento motivador. De facto, é importante, nos momentos difíceis e de grande incerteza as pessoas terem algo a que se agarrar, alguma coisa que lhes dê esperança, força e ânimo e quanto a isso, nada a dizer, o “Vai ficar tudo bem” cumpria e cumpre esse papel na perfeição. O pior é acreditarmos piamente numa frase motivadora, quando toda a nossa experiência anterior nos diz que isso não será bem assim e os nossos olhos e ouvidos o vão confirmando no dia-a-dia.
Não, não vai ficar tudo bem. Se o atual cenário se mantiver, ficaremos bem melhor que aquilo que estaríamos se as previsões mais negras para Portugal se tivessem confirmado, mas longe de uma situação que se possa dizer que estamos ou ficámos bem. Nesta guerra contra um inimigo invisível já perdemos muita gente, demasiada gente, apesar de até aí, em teoria, podermos estar muito pior. A perda de uma vida humana é sempre de lamentar e pouco me interessa que alguns venham dizer que se morre mais de uma vulgar gripe. As estatísticas até, eventualmente, o poderão indicar, mas curiosamente, já ouvi dizer que este e aquele morreram disto e daquilo mas de gripe, como elemento principal, confesso que não tenho memória… São realidades que, pelo que temos visto noutros pontos do globo, mesmo em países do primeiríssimo mundo, não são comparáveis a não ser na perspetiva meramente estatística.
Mas não perdemos só, e para já, mais de 1300 pessoas. Essa é a perda mais dolorosa, aquela que mais nos choca, mas depois há outras, a uma dimensão diferente, mas às quais é importante não virarmos a cara. Temos já muita gente que perdeu o emprego ou vive em situação inesperadamente precária. Pessoas de carne e osso, como nós, nossos vizinhos, até aqui com um nível de vida típico da classe média mas que um vírus e, nalguns casos, um vírus que parece ter dado “jeito” a alguns empregadores (quero acreditar que, mesmo assim, uma minoria) atirou para uma situação muito difícil, obrigando, inclusive, algumas, a ter de recorrer à caridade alheia para poder continuar a cumprir compromissos, ou, o que é mais chocante, para que a fome não lhe bata à porta. Os efeitos do confinamento social em termos da saúde mental/emocional, nomeadamente junto dos idosos, ainda estão por apurar mas serão também, naturalmente, nefastos.
Em suma, se formos a pensar bem, facilmente concluímos que o “Vamos ficar bem” motiva, dá alento, mas a realidade do dia-a-dia é mais complexa e, por isso, devemos olhar o futuro próximo com esperança mas sem tapar o sol com uma peneira. Não, não vamos ficar todos bem!
Outro mito muito em voga mas para o qual parece que já alguns começaram a acordar é o de que vamos sair disto diferentes e melhores… Puro engano! Para isso acontecer o confinamento e este viver num mundo ao contrário teria de ser muito mais prolongado no tempo. Não se muda a essência de uma pessoa, muito menos de uma sociedade, em escassos meses ou mesmo num ano.