Quarta-feira, 29 de setembro de 2021. Tiago Nascimento acorda espantado com o barulho do lançamento de fogo-de-artifício. Ao princípio não compreende a razão dos festejos mas rapidamente percebe que é Dia de São Miguel Arcanjo, o santo padroeiro da freguesia do Juncal. Não fosse a pandemia e naquele dia a vila estaria em festa. Horas mais tarde recebe a notícia de que o avô, César Nascimento, que tantas vezes fora juiz precisamente das festas em honra de São Miguel, falecera. «Sabíamos que ele estava um bocadinho mal mas não sabíamos que era tão grave», admite Luís Nascimento, um dos netos. Apesar dos seus 87 anos e de já estar internado no hospital desde meados de setembro, a morte apanhou toda a família desprevenida mas talvez não o próprio. «No dia em que foi para o hospital despediu-se da nossa avó com dois beijos e disse-lhe “eu sei o que tenho e sei que vou mas já não volto”», recorda Luís. «Até ao último segundo, o nosso avô foi sempre super ativo, mexia-se bem, era uma pessoa cheia de vida e mais lúcido que todos nós. Passava a vida no tablet e no telemóvel a pesquisar coisas», a descrição é feita por João Pedro, Luís e Tiago Nascimento, três dos seus quatro netos, que decidiram prestar-lhe uma homenagem simbólica, imortalizando-o numa das paredes de sua casa, no Juncal.
Homenagem não era para ser póstuma
Dar uma nova vida àquela parede branca era algo há muito pensado pelos netos mas o tempo foi passando e não se fez nada. «Nunca surgiu nenhuma ideia suficientemente forte», até ao dia em que César Nascimento deu entrada no hospital e não quiseram adiar mais. Esperavam que, no regresso a casa, o avô pudesse ver a obra de arte e para isso, puseram, de imediato, mãos à obra. Luís escolheu, então, a fotografia que seria pintada, uma selfie de César com a esposa, tirada pelo próprio. Editou-a no computador e fez o ensaio de como ficaria na parede. Já Tiago, professor no IEJ, ficou encarregue de pedir emprestado o projetor e de imprimir o acetato. Quando já tinham reunido praticamente todo o material e estavam prontos a começar receberam a triste notícia de que o avô tinha partido. Nesse momento, nem pensaram duas vezes. Poucas horas após o seu falecimento, os netos trocaram o momento de dor e de recolhimento pela pintura do mural para homenagear o avô, numa “missão” que se estendeu madrugada dentro. «Eu queria ter feito aquilo em vida, não era para ser uma homenagem póstuma. Mas acho que foi mesmo obra do destino, estava destinado para ser assim», afirma Luís Nascimento.
Neste processo nem tudo foi fácil. A somar ao cansaço, os netos enfrentaram ainda algumas dificuldades logísticas durante a realização do mural. «Estávamos a ter um problema técnico, o projetor ia caindo e o desenho ia baixando», lembra Tiago. Esse contratempo levou a que estivessem numa corrida contra o tempo para concluírem a pintura, antes que o desenho “desaparecesse”. Quatro horas e meio litro de tinta depois, os três netos concluíram a obra de arte urbana, pintada a preto e branco uma escolha que é, no entender do artista Basílio, a mais difícil. «Ele explicou-nos que com apenas dois tons é muito difícil perceber-se o desenho, mas o nosso estava super percetível, porque o normal é usarem três», refere Luís.
O funeral de César Nascimento aconteceu um dia depois, 30 de setembro, e a família pediu que antes da cerimónia fúnebre o carro funerário passasse junto àquela que foi durante anos a sua morada, agora embelezada com um mural em seu tributo. E assim foi. À hora marcada, o carro abrandou e parou junto ao mural onde estava um dos seus netos, Luís Nascimento, que optando por não estar presente no funeral, despediu-se ali mesmo pela última vez do seu avô. Embora já não tenha sido em vida, cumpriu-se, assim, o desejo dos netos que gostavam que o seu avô pudesse, de alguma forma, ver a homenagem que lhe fizeram.
César Nascimento, uma vida de factos curiosos
Faleceu aos 87 anos mas deixou uma vida cheia de coincidências e de curiosidades, que os seus netos fizeram questão de partilhar com O Portomosense. A somar ao facto de ter falecido precisamente no dia do santo padroeiro da vila, ele que durante vários anos foi o juiz das Festas do Juncal, César Nascimento era o eleitor número um da freguesia do Juncal e foi o primeiro presidente da Junta de Freguesia do Juncal, eleito democraticamente. Além disso, é descrito pelos seus netos como uma pessoa à frente do seu tempo, como prova o facto de ter sido uma das primeiras pessoas no Juncal a ter carta de condução, a ter um telefone ou a possuir uma televisão.
Curiosamente, até o último adeus de César Nascimento foi algo diferente, não porque as cerimónias fúnebres tivessem sido fora do comum mas porque foi a primeira pessoa a ter um funeral “normal” pós-COVID, com a igreja e a casa mortuária a reabrirem nessa data, já que faltando apenas um dia para o levantamento total das restrições entendeu-se que se podia antecipar essa abertura, facto recordado pelos netos.