Nuno Nogueira é natural da Mendiga, tem apenas 17 anos mas um percurso desportivo bem mais calejado do que a própria idade indica. Aos 10 foi convidado a assistir a um treino de andebol em cadeira de rodas (ACR) na Associação Portuguesa de Deficientes de Leiria (APD Leiria) e pouco depois já integrava tanto aquela equipa como também a de basquetebol (BCR). A curiosidade é que nestes desportos adaptados, pelo menos a nível de clubes, não há escalões, motivo pelo qual disputa desde tenra idade os campeonatos de seniores.
Foi a jogar como miúdo no meio de graúdos que evoluiu o suficiente para atingir a seleção de andebol, pela qual se sagrou campeão do Mundo e da Europa em 2022. Na temporada passada foi também um dos pré-selecionados da equipa A de BCR, que se preparava para disputar o Europeu Divisão B, estando, desde então, na calha para se tornar internacional A na sua modalidade de sonho.
A’O Portomosense, o jovem residente na Marinha da Mendiga, que nasceu com espinha bífida, explica como é viver com a doença e de que forma consegue ultrapassar os obstáculos que a vida diariamente lhe coloca.
«Eu só tinha 10 anos quando vim para a APD Leiria. Era uma criancinha no meio dos adultos, mas desde muito cedo comecei a gostar de praticar desporto», frisa. Primeiro experimentou a natação, depois esteve um par de épocas no futsal, modalidade que praticou entre os 6 e os 7 anos «sempre com duas talas enormes nas pernas» que lhe causavam ferimentos nos pés, o que fez com que o seu médico o aconselhasse a parar. O andebol e o basquetebol surgiram ao mesmo tempo na sua vida, mas como a Federação Portuguesa de Andebol apenas aceitava inscrevê-lo aos 16 anos, centrou-se aqui nos treinos com os colegas e no campeonato de basquetebol, mesmo que nem altura tivesse para chegar ao cesto. «Só um ou dois anos mais tarde é que conseguiram inscrever-me no andebol, isto depois de o clube ter intercedido, sob a forma de um pedido especial em meu nome. Aí sim, pude começar a jogar», recorda.
Conciliar duas modalidades tão distintas, aulas no Agrupamento de Escolas de Porto de Mós e vida pessoal desde tão tenra idade não é tarefa fácil, mas nada que assuste Nuno Nogueira. A nível desportivo, sempre beneficiou da estrutura montada para que os atletas da APD Leiria pudessem disputar as ligas e torneios de ACR e BCR em simultâneo. «O nosso calendário é organizado para jogarmos, por exemplo, basquetebol ao sábado e andebol ao domingo, ou vice-versa. Depois, os treinos são ajustados em função dos desafios que vamos tendo. Se há apenas basquetebol no fim de semana, é óbvio que a prioridade passa a ser o basquetebol durante a semana de trabalhos», explica.
Mas para a temporada que se avizinha a rotina que Nogueira conhece vai mudar radicalmente. Por falta de atletas, a APD Leiria viu-se forçada a suspender por pelo menos um ano a competição em andebol. Desistir desta modalidade e dedicar-se a 100% ao basquetebol em cadeira de rodas, desporto onde sonha profissionalizar-se, talvez fosse a saída mais fácil, mas Nuno Nogueira, obstinado por natureza, decidiu manter-se ligado por um motivo, no mínimo, nobre: «Esta vai ser provavelmente a minha última época no andebol, então quero sair em grande. Para poder disputar as próximas competições internacionais, tenho que estar ligado a uma equipa, foi por isso que quis ir para a Figueira da Foz. Tenho sempre a seleção portuguesa em mente e quero mostrar o meu valor porque o Campeonato do Mundo, que se disputa em setembro, está aí à porta», exclamou o campeão europeu e mundial.
De quinas ao peito (“andebolisticamente” falando) desde 2021, o atleta diz ter-se demorado a habituar àquela ideia. Quando começou a jogar não tinha grandes expectativas de representar Portugal, mas à medida que os anos iam passando, foi-se apercebendo dessa hipótese, sobretudo quando o convocaram para a preparação do Mundial de 2022. «Tinha eu 15 anos na altura e em teoria nem podia jogar o Mundial nem o Europeu. Só me caiu a ficha quando começaram a chegar pedidos de autorização especiais para eu ir. A minha estreia foi num torneio no Algarve e um mês depois estava já a disputar e a vencer o Mundial e o Europeu», lembra.
Campeão Europeu e Mundial de andebol… aos 15 anos
Questionado sobre o primeiro impacto junto de uma seleção principal, na qual a maioria dos companheiros já tinha “barba rija”, Nuno Nogueira não esconde que de início os nervos apoderaram-se dele «jogo sim, jogo também». Ainda assim, a sua inserção num grupo que «ri quando é para rir e trabalha quando é para trabalhar» ajudou: «Acabei então por integrar-me bem. No primeiro jogo ninguém me ouvia, no segundo ganhei alguma confiança e no terceiro já gritava com toda a gente… Até os responsáveis da Federação me diziam que já só me faltava cantar… O campeonato Europeu e o Mundial acabou por ser, então, uma experiência divertida e dura ao mesmo tempo, porque não nos podíamos esquecer que estávamos a carregar o símbolo de Portugal». Para os leigos, poderá não fazer sentido um Europeu e um Mundial serem disputados em simultâneo, mas até para esclarecer tais questões Nogueira tem uma resposta concisa o suficiente: «Fizeram naquele ano um formato diferente com o grande objetivo de colocar o ACR nos Paralímpicos2024. Infelizmente não conseguiram, mas vão tentar novamente em 2028. Em termos práticos, os jogos que tínhamos com seleções europeias contavam para o Mundial e para o Europeu, e os que fazíamos com Índia e Paquistão contavam só para o Mundial».
Universidade, basquetebol e emigração no horizonte
Prestes a entrar no 12.º ano, o terceiro e último do curso de Ciências e Tecnologias, Nuno Nogueira já está de olhos postos no futuro, que acredita ter que passar pela diáspora. Espanha é o seu destino de eleição, por ser nesse país que existe, a seu ver, «a melhor liga e os melhores clubes de BCR do mundo». Como em Portugal o basquetebol se joga apenas a nível amador e sem contrapartidas financeiras, estudar e jogar no país vizinho parece-lhe a opção mais válida. «Na 1.ª Divisão espanhola todos os jogadores são profissionais e há uma grande aposta em estrangeiros, ao contrário do que acontece por exemplo no segundo escalão, que também é forte mas que contrata mais jogadores nacionais. Depois, na 1.ª estão duas das minhas equipas de sonho. Uma é o Albacete, que ganhou as últimas três Ligas dos Campeões, e a outra é a CD Ilunion» refere.
Sobre a prática deste desporto em particular, o jovem da Marinha da Mendiga dá também algumas nuances técnico-táticas: «No BCR há posições definidas, mas a principal característica é que, além de todos os atletas jogarem de cadeira de rodas e nunca se poderem levantar – sob pena de serem punidos com falta técnica pelos árbitros -, os treinadores têm que “jogar” com o sistema de classificação funcional, que é uma escala que vai de 1 a 4,5 (ou 1 a 4 no ACR) e que define o grau de lesão de cada atleta. Em campo, cada equipa pode ter, no máximo, 14,5 pontos entre os cinco jogadores», especifica.
Um modelo que traz “justiça e equidade”
Instado a pronunciar-se sobre o impacto deste sistema em jogo, Nuno Nogueira, categorizado como «um 3», é perentório: «É um modelo que traz justiça e equidade ao desporto. Todos temos as mesmas oportunidades de jogar. Imagine-se que havia uma equipa composta principalmente de amputados, que normalmente são os atletas com maior mobilidade e também os mais altos… Estavam sempre cinco a jogar. Assim os treinadores têm que encontrar um equilíbrio dentro dos plantéis e desenvolver táticas mediante as pontuações. Há toda uma ciência à volta das classificações funcionais», regista.
Fruto deste modelo mas também de muito trabalho e persistência, o jovem atleta fixou-se de pedra e cal nos sub-23 da seleção portuguesa de basquetebol em cadeira de rodas e durante a época 2023/24 recebeu a tão aguardada chamada aos séniores. «Em abril integrei o estágio de preparação para o Europeu Divisão B e vi que ali tudo era diferente. Enquanto que no escalão de formação há paragens para explicar certos fundamentos, na A nós só trabalhamos, não se perde tempo. Para se ter noção, ali treinávamos quatro vezes por dia. Fazíamos trabalho de pavilhão e de ginásio. Fazer isso nos sub-23 é impensável porque a preparação física é outra», admite.
Embora a fase de preparação para a competição tenha corrido bem a nível individual, Nogueira foi um dos três preteridos pelo selecionador. Ainda assim, sente-se «na calha» para voltar aos séniores e estrear-se: «Sei que é uma questão de tempo e de experiência, tenho é que continuar a trabalhar arduamente». O próximo Europeu é já daqui a dois anos.
Um mundo de parcos apoios
Com o sucesso de Portugal nos Jogos Olímpicos de Paris e com a expectativa em alta para aquilo que a nossa comitiva fará entre 28 de agosto e 8 de setembro nos Paralímpicos, a questão tinha, naturalmente, que surgir: os portugueses estão habituados a fazer muito com muito pouco. De que forma olhas para o presente e para o futuro das modalidades adaptadas?. «Portugal é um país que só vê futebol, mais futebol e ainda mais futebol», retorquiu. «A ginástica trouxe-nos a final do all-around, um feito histórico, e fez isso com muito pouco investimento. E se esses desportos olímpicos ficam para trás, então nós, no desporto adaptado, ainda ficamos atrás deles», completou.
Neste momento a falta de apoios traduz-se, principalmente, na falta de profissionais qualificados para orientar equipas adaptadas e também impossibilita que no nosso país os atletas sejam remunerados. Para fazer face a esta situação, muitas das vezes os próprios atletas que têm que arranjar forma de se sustentar. No caso de Nogueira, a APD apoia com transportes e o próprio Município de Porto de Mós disponibiliza, desde há dois anos, uma verba para comparticipar os custos de deslocações para treinos e jogos. Ainda assim, Nuno não para e o seu Instagram é um excelente exemplo disso. São várias as parcerias que vai tentando estabelecer com marcas fruto da sua exposição. Agora, o seu grande objetivo é “fechar” acordo com um ginásio local, para que possa concentrar-se em desenvolver extra-treinos a componente física, de forma a elevar, ainda mais, o seu rendimento desportivo. Uma outra dimensão Nuno que dá àquela rede social é, também ela, meritória: «Tenho apostado nas redes para mostrar ao pessoal jovem, como eu, que a deficiência não nos limita, projeta-nos para algo maior e ajuda-nos a ultrapassar ainda mais desafios», vinca com orgulho.
Nuno Nogueira assume-se como um jogador de equipa, cujo maior trunfo é a sua vontade de ganhar, fazendo, para isso, o que estiver ao seu alcance, dando tudo de si. «Acho que é a tal “raça” que se associa à Mendiga, que é desde cedo incutida por aqui. Deve ser dos ares da serra», atira.
Fotos | Miguel Fonseca