O tema era No dia 25 de Abril estava eu… e o espaço não podia ser mais adequado para o efeito: foi na sede da antiga freguesia de Alcaria, outrora salão paroquial, que, há 49 anos, se acompanhou na televisão a preto-e-branco a Guerra do Ultramar, os conflitos que levaram à Revolução dos Cravos – e os conflitos que a sucederam. A própria Revolução, contudo, não foi televisionada. Nenhum dos quatro elementos que no passado dia 29 de abril participou na sessão (integrada nas comemorações dos 50 anos do 25 de Abril de 1974, iniciadas em 2022) «estava sentado numa cadeira em frente à televisão», como explicou Benvinda Januário, de Alvados. «Não houve assim um clique», diz a professora, ao lado de Amílcar Santos, Ana Varatojo e Paulo Melo, ali presentes a convite do Município de Porto de Mós e da União de Freguesias de Alvados e Alcaria. Os quatro foram interlocutores numa conversa animada que espelhou principalmente as grandes diferenças, sociais, culturais e económicas que se fizeram sentir quando da passagem para a Democracia.
No Ultramar
A sessão sucedeu à atividade do fim de semana anterior, na Escola Viva de Alvados, onde se falou sobre a passagem dos portomosenses pelas Forças Armadas Portuguesas em África. Como foi o caso de Amílcar Santos, o primeiro a partilhar o seu testemunho. O alvadense estava precisamente em Angola quando da revolução, mas fez de imediato uma ressalva no início da sua intervenção: «Se eu fosse a contar as histórias do Ultramar, tinha de estar aqui até amanhã». Daí que no seu relato destaque o que se passou no dia em que as tropas descobriram sobre o golpe de estado em Lisboa: «O 25 de Abril para a maioria do povo deu um país de maravilhas, todos riam de contentes. Eu estava em Angola, e nós lá chorávamos porque não sabíamos qual era o nosso futuro, passámos lá umas experiências um bocadinho difíceis, até ao ponto de não termos água nem luz, tal e qual aqui com a guerra da Ucrânia», compara o ex-combatente. Sentindo-se abandonado pelo próprio país e “preso” nos términos da Guerra de Independência de Angola, Amílcar Santos revelou ainda aos seus conterrâneos os traços do seu regresso, vinte meses depois da Revolução, com uma camisa «casquinha de ovo» (que trocou com um angolano por uma granada antitanque) e com uns sapatos 10 números abaixo do seu tamanho. Fez a mala «duas vezes para abalar» e explodiu pontes à sua passagem para não ser seguido pelas forças armadas angolanas – ele e os seus companheiros. Foi um dos últimos portugueses a abandonar as terras de África, em janeiro de 1976. Mas as memórias ainda estão bem vincadas: «Isto são histórias muito complicadas mas reais. As coisas não eram assim tão fáceis como a gente pensa. Muita mazela cá dentro», confessou.
Na serra e na vila sede
Já Benvinda Januário estava na escola do Arrimal e foi «sabendo aos poucos» o que se passava em Lisboa, «porque nem toda a gente tinha um rádio». Foi no Arrimal que também começou a namorar – com o atual companheiro, Mário Januário, e ambos foram relatando as vicissitudes do tempo: desde a lei salazarista «que proibia que as professoras casassem com alguém com menos condições» (mas que não impediu o casal de se juntar), à «escola masculina e escola feminina, dividida ao meio por um gradeamento de cimento, não se podiam misturar. E com o crucifixo e o Salazar» na parede. As recordações são várias e corroboradas pelos presentes: a falta de recursos («o meu tempo era passado com umas folhas de papel químico, tantas quantas eu pudesse, não havia uma fotocopiadora», diz a professora); as licenças de isqueiro, as licenças de condução de bicicleta, de carro. A condição feminina, com a mulher a ser vista como dependente, com o mesmo estatuto do filho, explica Mário Januário. E as ganas juvenis da política, que, em Porto de Mós, se fizeram ouvir – houve «utensílios da associação 1.º de maio que foram atirados da janela para baixo, móveis, televisões. Na Praça da República houve um portomosense que subiu acima do palco e gritou a plenos pulmões: Quem não fosse do PPDP-PSD não era bom pai de família. Os do outro lado, os comunistas, porque ou se era comunista ou se era fascista, subiram acima do palco, desataram aos murros e aos pontapés, foi uma sessão de pancadaria», relatou.
Depois, desabaram os muros que dividiam as escolas, os cafés passaram a ser de todos e o país alterou-se para ver chegar as novas gerações, embora essas ainda se recordem de outros tempos: «Lembro-me de ver em cima do guarda-fatos um tubo com uma fotografia do Ramalho Eanes, ele [o pai] tinha lá escondido para ninguém ver, com medo que dissessem que ele era fascista ou comunista», conta Paulo Melo, que tinha 5 anos no 25 de Abril e não se recorda de quando o Almirante Américo Tomás visitou Alvados (1973), mas esteve lá, porque todos lho dizem. Ia inclusive entregar um ramo de flores ao militar, mas começou a chorar e já não foi ele o escolhido. Vídeos dessa visita foram transmitidos durante a sessão, na intervenção do alvadense, antes de se passar a palavra ao público, que esteve muito interventivo ao longo de toda a tarde. As histórias foram várias. Desde «o António Martins de Porto de Mós, que foi fiscalizado na ponte pelo próprio filho», segundo Mário Januário; à viagem de Nuno do Rosário Martins a Lisboa nessa mesma madrugada. Ia com três colegas e até foram avisados, mas, como diz, «a gente nem sabia o que era um golpe de estado», e seguiram. Não chegaram a entrar em Lisboa: «fomos obrigados a regressar à base», confessa. Já Maria da Conceição Ferreira e Maria da Conceição Martins estavam em casa, «a cuidar da filhota», diz a primeira. «Fiquei com muito medo, a gente pensava que ia haver guerra mesmo, que ia morrer muita gente», relatou. Hoje, tem quase 80 anos, filhas e netos. Membros da geração que sorveu e sorve os valores de Abril.
Num futuro em Democracia
Ana Varatojo não tinha ainda nascido quando do 25 de Abril de 1974. Nem sequer a própria mãe, como revelou. A jovem de Alcaria, mestranda em Direito, esteve presente para falar sobre o contacto dos jovens com a Revolução, que é «um contacto muito diferente», acredita, já que se começa o ensino da História «pela mais antiga até à mais recente, com jeitinho quase não se toca no 25 de Abril. E nem toda a gente tem História no 12.º ano, que é onde efetivamente se aprofundam mais essas questões».
A jovem questiona-se se, ao terem crescido «em democracia», «os jovens estão atentos, despertos para este risco» crescente que diz ser a normalização dos extremismos na política. Ana Varatojo acredita que a sua «geração acaba por estar mais atenta aos valores de Abril, das liberdades, do que por exemplo quem está na casa dos 30, 40 anos», fruto das condições sócio-económicas da atualidade. E nota que esta está diferente de há esses tempos para cá: «Havia uma paz social maior do que há agora, ninguém está satisfeito com as condições. Não vou dizer aquela coisa do “falta cumprir Abril”, mas acho sim que falta reafirmar os valores de Abril. É um ciclo vicioso, as pessoas entendem que estamos mal e estamos, não vale a pena, não vamos mudar nada, e agora a pouca mudança que há é por extremos. Por isso é que eu digo que a minha geração está mais desperta para os valores de Abril que por exemplo a vossa [dos pais]. Vejo muita gente a sair à rua», frisa.
Foto | Bruno Fidalgo Sousa