Em Entrevista… Kitó Ferreira

Autor: | 24 Fev 2020

Em Entrevista… Kitó Ferreira

24 Fev 2020

Antes do Kitó treinador, falemos do Kitó homem. A sua vida viria a revelar-se desafiadora, mas até aos 9 anos teve uma vida normal. Que memórias tem até essa idade?
Até aos 9 anos tive uma infância completamente normal como qualquer outra criança, com pai, mãe, um irmão mais velho. Vivia na zona da Carvalha, nos Parceiros, e a minha infância foi passada numa aldeia que não tinha mais que 10 ou 12 casas.

Com 9 anos viu-se obrigado a viver na rua. Como é que uma vida perfeitamente normal dá essa volta?
Os meus pais divorciaram-se e o meu pai saiu de casa e tudo o que tínhamos, ele vendeu. Eu, a minha mãe e o meu irmão mais velho ficámos sem nada e não tivemos outra solução, senão partir para a luta. Cheguei a vender nas feiras, vendi pensos rápidos e bolas de naftalina à porta da igreja. Fui carpinteiro e o meu irmão mecânico. Durante três anos vivemos literalmente na rua, no conhecido Parque do Avião, em Leiria. Depois construimos uma barraca que acabou por se tornar mítica. Entretanto, foi construído o Bairro Francisco Sá Carneiro, nos Marrazes e as habituações foram atribuídas a pessoas que vieram, principalmente, de Angola. Na altura, por já ter ligação ao desporto, conhecíamos uma pessoa que trabalhava na Câmara e que nos conseguiu atribuir uma casa, com uma renda a um preço simbólico. Ter uma casa, um quarto, uma casa de banho, foi das maiores riquezas.

Já falou algumas vezes da relação de proteção mútua que estabeleceu com o seu irmão. Que papel teve ele nesta fase?
Foi extremamente importante, porque com 9 anos, não tendo uma figura paternal, ter um irmão mais velho acaba por ser marcante. Independentemente dos traumas e do sofrimento que tínhamos, estabelecemos uma grande ligação. Era sempre a ele que recorria e tenho memórias extremamente fortes. Houve uma altura em que tínhamos um caixote de papelão para dormir, um dia dormia ele e outro dia dormia eu lá dentro. Lembro-me que um dia, era a vez dele de dormir no caixote, mas eu fiz uma birra e ele saiu para eu entrar. São momentos que têm valor.

Diz muitas vezes que a sua mãe foi “uma santa na terra”. Ela ajudou-vos a manter a esperança?
Eu acho que o maior amor que nós temos é realmente a mãe. A melhor homenagem que posso fazer à minha é contar este episódio. Na fase em que tínhamos que sair da casa e quando as dificuldades já eram grandes, houve um almoço em que a minha mãe fez um bife e cortou metade para mim e metade para o meu irmão. Nós estávamos à espera que ela comesse também, mas ela disse que já tinha comido, virou-se para o lava loiça e começou a chorar, pelo momento e com fome. Aquilo que tinha deu aos filhos…

Começou a jogar futebol de rua. O futebol foi a paixão que lhe deu força para se erguer?
Tenho dificuldade em perceber se o desporto vem primeiro que a vida ou se a vida vem primeiro que o desporto. O futebol de rua salvou-me, literalmente. Foi aí que tudo começou e aí que nasceu para mim o conceito de amizade e de conviver em sociedade e para uma criança que se sente revoltada com a vida, essa parte veio equilibrar e fez-me criar objetivos.

Depois veio a União de Leiria (UDL). Como foi esta primeira experiência como jogador e porquê ser guarda-redes?
O ser guarda-redes tem a ver com uma certa “pancada”, dava-me um prazer enorme mandar-me para o chão já no do futebol de rua. Eu fui para a UDL através de um amigo que fiz no futebol de rua que me disse para ir aos treinos de captação. A UDL naquela altura era como se fosse o Benfica ou o FC Porto na nossa cidade. O estar num clube, conhecer um novo mundo, permitiu que fosse passando a revolta. Havia um ambiente familiar que o futebol tinha, esse é que é o futebol puro, não o que passa na televisão. Ainda hoje os treinadores e os diretores são figuras extraordinárias e de grande respeito.

Era um bom guarda-redes?
Fui um guarda-redes normal, dentro daquilo que era o top do distrito. Fiz um percurso natural e não consegui ir mais longe por culpa própria. As dificuldades levaram-me a cometer alguns erros, quer em jogo, quer na vida e na preparação do jogo para ter o rendimento adequado. Sempre a dividir o futebol com outra profissão. Não atingi o topo de jogador nacional, mas orgulho-me daquilo que fiz a nível distrital.

Foi também jogador do Portomosense, como é que foi essa experiência?
Porto de Mós é uma vila que me diz muito porque foi a primeira vez que saí de Leiria para jogar. A nível desportivo construiu-se uma equipa histórica, foi a primeira vez que o Portomosense subiu à 3.ª Divisão Nacional. Lembro-me claramente dos momentos que passei nessas duas épocas fantásticas quer a nível pessoal, quer a nível desportivo. Curiosamente, no meu segundo casamento, acabei por casar com uma senhora de Porto de Mós. A vida tem destas coincidências e hoje tenho residência em Porto de Mós e é cá que está a minha família.

Começou no futebol, como é que se deu depois a transição para o futsal?
Essa foi outra das histórias caricatas da minha vida. Na altura, o Núcleo Sportinguista de Leiria tinha uma equipa na na 3.ª Divisão Nacional. Recebi um convite do senhor Máximo, que era diretor, para pertencer à estrutura da direção. Na altura eu tinha já uma vida estabilizada em termos financeiros e familiares e quando as pessoas que nos deram a mão nos colocam desafios é impossível dizer que não. De repente a equipa fica sem treinador e eu sou o responsável por gerir a equipa juntamente com o senhor Máximo. Arranjámos um treinador e preparámos a época. A uma semana de começar o campeonato recebi um telefonema a dizer que o treinador tinha tido um problema grave de saúde e não poderia treinar mais. E é aí que me é colocado o desafio, pelo senhor Máximo, de tomar conta da equipa. Na altura, aquilo foi um choque para mim, mas ele sabia como me desafiar e perguntou-me se estava com medo. Quando ele me faz essa pergunta eu digo-lhe: Amanhã há treino às 23 horas.

O que é mais interessante enquanto treinador, gerir personalidades ou questões técnico-táticas?
Personalidades. Eu sou extremamente apaixonado pela relação e pela mente humana e quando estamos a agarrar na mente para direcionar aquilo que é o seu dia-a-dia, dá-me um fascínio extraordinário. Eu costumo dizer que a tática é um pormenor, tudo o que são fatores de rendimento individuais e coletivos são pormenores porque o que vem em primeiro lugar é o ser humano e é isso que me tem fascinado como treinador.

Treinar a Burinhosa foi um desafio interessante? É um local onde se vive o futsal de uma forma muito intensa?
Sim. Realmente a Burinhosa tem algo diferente na forma como as pessoas olham para o futsal e, acima de tudo, na forma como as pessoas vivem o seu clube. Por ser um local pequeno, tornou-se também única essa entrega de toda a gente da aldeia, porque estamos a falar de uma aldeia com 500 habitantes. Toda a gente está entregue à sua equipa e foi essa, também, a diferença que fez com que a Burinhosa chegasse onde chegou.

Como foi proporcionar a subida desta equipa?
Chegar à 1.ª Divisão é um momento difícil de descrever. Subimos num jogo nos Açores, em Rabo de Peixe e desde o apito final até chegar à Burinhosa, o trajeto foi único. Do pavilhão para o aeroporto, a viagem no avião, a chegada ao aeroporto, toda a viagem de Lisboa até Pataias e depois até à Burinhosa é memorável. Toda essa noite é histórica e quem a viveu mas também quem trabalhou durante toda a história do clube e da terra, merece estar nessa história.

Atualmente o desafio é o Elétrico de Ponte Sor, qual é a sua expectativa em relação à equipa? É um projeto no qual se quer manter no comando?
Quando se fala de futuro para um treinador, o futuro é o treino amanhã. Eu entro nos clubes como se lá tivesse nascido e vivo-os como se lá viesse a morrer. O projeto do Elétrico é fantástico. Está-me a dar um prazer enorme. Estamos a falar de uma equipa que há três anos estava a disputar o distrital de Portalegre e que no ano passado esteve em dois dos três maiores momentos do futsal português: A final eight da Taça da Liga, a final eight da Taça de Portugal e os play-offs do campeonato. Para esta época, houve um desafio enorme que foi a alteração do conceito de trabalho, assumindo o profissionalismo a 100%. Tínhamos jogadores que faziam à volta de 50 quilómetros para treinar e nós decidimos que queríamos toda a gente em Ponte de Sor. Está a ser um desafio enorme esta alteração, passando do distrital de Portalegre e de um regime completamente amador, para uma estrutura com um departamento médico, roupeiro, 16 jogadores a viver em Ponte de Sor e com treinadores profissionais. Isto, de um ano para o outro, é um desafio extraordinário.

Temos uma seleção campeã europeia, qual tem sido para si a evolução do futsal em Portugal?
O ser campeão europeu deve-se ao trabalho de muita gente, treinadores, diretores, jogadores, que começaram todo o futsal português há muitos anos mas o grande mérito direto é desta estrutura que conseguiu ser campeã da Europa, juntando a uma estrutura também, num grande momento do futsal português, que conseguiu aquele terceiro lugar, na altura, liderada pelo pai do futsal português, o mister Orlando Duarte e que tão boa continuidade tem agora do mister Jorge Braz. O que é importante é que cada um que tem responsabilidade no futsal português perceba com esta conquista que nós temos potencial para ter a melhor liga do mundo, mas ainda não a temos. Enquanto não olharmos para o futsal como um produto de uma forma global e não só individual, não vamos aproveitar este título.

Qual foi o melhor momento da sua carreira até agora?
O melhor momento é todos os dias. O melhor momento é acordar e ir treinar os meus jogadores. Eu tenho uma paixão enorme pelo que faço. Não consigo viver sem estar às 9 horas à porta do pavilhão do Elétrico e ver os jogadores a chegar. Sou completamente apaixonado pelos jogadores, pela bola, pelo pavilhão. Esse para mim é o melhor momento da minha carreira. Ao fim de 20 anos continua a ser uma paixão. Adoro a forma como os jogadores chegam ao treino, como estão no treino, como se entregam, como nós avaliamos o treino, a forma como nos reunimos, a equipa técnica e o departamento médico. Sou completamente apaixonado pelo desafio momentâneo durante 24 horas por dia. O melhor momento da minha carreira é o treino de amanhã.