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“O meu coração diz-me que eu vou para a Ucrânia”

21 Março 2022
Jéssica Moás de Sá

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Jéssica Moás de Sá

21 Mar, 2022

São ucranianos mas também já têm um pedaço de Portugal (e de Porto de Mós) entranhado nos seus corpos. Agora, o coração deles está a quatro mil quilómetros daqui, na Ucrânia – a pátria onde nasceram e cresceram – agora em guerra. Não é preciso perguntar para saber a resposta, a dor de ver o seu país e o seu povo a ser atacado é intensa, ainda assim, ouvimos-lhes os testemunhos que não nos deixam adormecer a consciência de que esta é uma luta de todos.

O nome Yuri Feshchak já passou pelas páginas deste jornal, por motivos menos tristes, quando contámos a sua história como bombeiro da corporação de Bombeiros Voluntários de Mira de Aire. Hoje contamos a sua história como um ucraniano que está há 22 anos em Portugal e que tem família em plena guerra. Em terras lusas tem também o irmão, que vive em Coimbra, mas em Mira de Aire, onde vive, não tem qualquer família. Na Ucrânia tem os pais, já com 70 anos, tios e primos. Quando soube, pela mãe, o que estava a acontecer, foi difícil acreditar: «Foi muito doloroso, um choque, quando a minha mãe me ligou a chorar, às 7 horas de cá, e me disse que estavam a atacar a Ucrânia».

Apesar de a tensão entre a Rússia e a Ucrânia ter sido sempre uma constante após o fim da União Soviética (URSS) e de, inclusive, já terem existido outros conflitos, a verdade é que Yuri Feshchak não esperava que, agora, a Rússia cumprisse o ataque que prometia. «Depois do que aconteceu em 2014 [aquando da anexação da Crimeia à Rússia], pensei que os conflitos ficariam por ali, infelizmente enganei-me», frisa. Até agora, a família do bombeiro não sofreu impactos diretos por viver «numa zona mais sossegada, encostada à Polónia»: «Estou com esperança que não chegue à minha terra porque os russos têm medo de atacar a parte norte da Ucrânia que está encostada à Polónia, porque basta um descuido para “cair” alguma coisa para lá da fronteira que fará com que a NATO intervenha». Por esta razão, nenhum dos seus familiares optou por fugir do país até ao momento, antes pelo contrário. «O meu primo deixou a Polónia e foi-se entregar às Forças Armadas da Ucrânia», conta. A mesma vontade tem Yuri Feshchak: «O meu coração diz-me que eu vou para lá. Assim que começar a afetar a minha zona de certeza que vou. Já tenho as coisas preparadas para, se for preciso, arrancar amanhã, basta uma mochila às costas». O que é que ainda o prende em Portugal? «Se me for entregar agora vou ficar numa zona resguardada a fazer patrulhamentos, há muita gente ainda para fazer isso. Eu quero ir quando for preciso na linha da frente, para lutar», explica.

Se a situação piorar na terra onde tem os seus familiares, é objetivo de Yuri Feshchak ir buscar os seus pais e levá-los para a Polónia. «O meu pai tem lá familiares, a minha avó paterna é polaca e espero que nos aceitem, se não, trago-os para Portugal», afirma. Por falar em Portugal, o bombeiro diz que aqui tem encontrado muito apoio e agradece por isso. «Agradeço à Câmara Municipal pela ajuda humanitária que estão a organizar, aos meus colegas dos bombeiros sempre preocupados comigo, a todos», reconhece.

“Uma irmã do meu marido está na Rússia e não acredita que há guerra na Ucrânia”

Olena Kononenko e o marido, Serhiy Kononenko, estão também há 22 anos em Portugal. Vieram precisamente para fugir ao regime opressor que ainda se sentiu na Ucrânia durante alguns anos após a sua independência da URSS. «Já estávamos casados e viemos para Portugal porque calhou, sempre quisemos vir para a Europa, não tanto à procura de uma vida melhor monetariamente mas porque, na altura, a Ucrânia era muito diferente no regime», recorda Olena Kononenko. Hoje já têm um filho português, com 13 anos, tiveram também uma filha que acabou por falecer dias depois de ter nascido, em 2005. Esta sua história de vida faz com que lhe seja ainda mais difícil deparar-se com imagens da guerra em que pais se separam dos filhos. «Tenho tanta pena daquelas pessoas que estão a perder os seus filhos e a vê-los sofrer, porque consigo entender aquela dor. Quem não passou, não consegue entender. Dói-me tanto o coração, dói-me tudo dentro de mim», diz, inconformada.

«Eu vi que as coisas não estavam bem, mas achava que o Putin ia apanhar apenas as zonas de Donetsk e Lugansk, regiões onde ele é apoiado, as pessoas gostam da Rússia, falam russo, não são muitos, alguns também fugiram para a Ucrânia quando começou, mas esses ficaram», frisa. A verdade é que a ideia do líder russo era atingir toda a Ucrânia e toda a região de onde é natural Olena Kononenko já foi monopolizada pelos russos, à exceção do centro da cidade. Esta cidade, Sumy, fica entre Kharkiv e Kiev, já esteve sem luz e sem água, devido aos ataques russos. É nesta terra que tem vários familiares. O marido tem não só família na Ucrânia, como também na Rússia. «Tem três irmãs, duas estão na Ucrânia e uma outra está na Rússia e não acredita que há guerra na Ucrânia, diz que é apenas uma operação militar», conta Olena Kononenko. «Dá para imaginar a situação que as pessoas vivem na Rússia, são controladas, não têm acesso a informação nenhuma», acrescenta ainda.

Um dos primos de Olena Kononenko que está na Ucrânia diz que a quantidade de tropas russas que passam nas ruas é inimaginável e impediram a sua fuga durante algum tempo. «Muitos familiares meus ainda continuam na Ucrânia, alguns conseguiram fugir para zonas mais tranquilas, outros não», explica. Olena Kononenko já se prontificou a ir buscar os familiares à fronteira e trazê-los para Portugal, assim que consigam e queiram, mas à semelhança de muitos testemunhos que vamos ouvindo, muitos preferem ficar no seu país a lutar até poderem. Apesar da Rússia afirmar abrir corredores para deixar os civis saírem, os ucranianos não acreditam. «Em 2014 eles disseram que iam abrir corredores mas depois mataram as pessoas, não dá para acreditar», lembra.

Tal como Yuri Feshchak, Olena Kononenko agradece também aos portugueses toda a ajuda que em «poucos dias» permitiu juntar vários camiões com bens para levar até às fronteiras. «O problema é que estas ajudas não chegam à tropa, chegam aos refugiados nas fronteiras mas não aos militares cercados pelos russos. Já começou a faltar comida para essas pessoas», revela. O inverno rigoroso, com neve e temperaturas negativas, também não tem dado “tréguas”, acentuando um cenário que já nada tinha de positivo.

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