O sonho tem mais de 40 anos e nunca como agora esteve tão perto de se tornar realidade. Se tudo correr como previsto, 2024 deverá ser o ano em que a população do Alqueidão da Serra verá satisfeito um desejo antigo: ver restaurado o velho órgão de tubos da igreja paroquial, peça descrita pelo perito organeiro italiano, Rufftatti, o construtor dos órgãos do Santuário de Fátima como «objeto de raro valor histórico e cultural».
Depois de várias tentativas sempre abortadas por falta de capacidade económica de uma paróquia que vive, literalmente, das esmolas dos seus membros, desta vez o cenário é diferente. Recuperar aquele que é um dos raros órgãos de tubos de toda a diocese continua a exigir um enorme esforço financeiro, mas desta vez a população mostra-se unida e da parte do poder autárquico também há a promessa de que a seu tempo a ajuda chegará. A estes serão chamados a juntar-se cidadãos anónimos e empresas sensíveis a este tipo de causas.
Criada comissão de restauro
À conversa com O Portomosense, o pároco do Alqueidão da Serra, Vítor Mira, evoca os episódios mais recentes de uma história de, pelo menos, quatro décadas, e explica todos os pormenores do projeto em marcha. «Quando cá cheguei, há cinco anos, tive conhecimento de que havia um órgão do século XVIII que estava em muito mau estado de conservação. Como estava guardado num pavilhão de arrumos e sempre que era movimentado corria o risco de se degradar mais um pouco, eu e o Conselho Económico da paróquia decidimos trazê-lo para um lugar onde pudesse estar mais estável e assim foi», conta. «Falou-se do assunto mas é evidente que alguém que entra numa paróquia não começa logo a fazer coisas. Primeiro tenta conhecer as pessoas e as instituições e integrar-se e só depois procura criar dinamismos, até porque recuperar um órgão destes obriga à mobilização de toda a comunidade», justifica.
O processo, refere o sacerdote, «começou antes da pandemia com a constituição de uma comissão para a recuperação do órgão, mas com a chegada da COVID-19 foi interrompido». Já com o grupo de sete pessoas a trabalhar «procurou-se saber junto de entendidos na área quais as empresas que dariam mais garantias do trabalho ficar bem feito e dentro das capacidades financeiras da paróquia». Encontrada a empresa e com as coisas já mais ou menos definidas, foi promovida em outubro de 2022, uma assembleia paroquial. «Queríamos ouvir a comunidade para ver se se identificava com o projeto e se podíamos contar com o seu apoio, o que efetivamente aconteceu», adianta Vítor Mira. O passo seguinte foi pedir a necessária autorização à Diocese. O “sim” chegou há menos de 15 dias. Entretanto, «como se trata de uma peça única no concelho e os responsáveis já tinham dito que estavam interessados e disponíveis para ajudar, foi enviada uma carta à Câmara a pedir apoio financeiro para recuperar este “património municipal”».
Intervenção custa 39 mil euros
O trabalho será entregue ao mestre organeiro Dinarte Machado, o responsável, entre muitos outros, pelo restauro dos órgãos históricos da Basílica da Estrela, Conservatório Nacional, e Basílica do Palácio Nacional de Mafra. O prazo de execução é de 10 meses pelo que o mais provável é que a música do velho órgão só se venha a ouvir já em 2024. A recuperação está orçada em 39 mil euros.
«A população está mobilizada e a comissão bastante motivada. As pessoas estão muito entusiasmadas, acreditam neste projeto e têm a consciência que ter esta peça não é um peso mas um privilégio. É evidente que do ponto de vista económico, se calhar, é um peso mas temos de a ver, sobretudo, como um privilégio porque foi um legado que os nossos antepassados nos deixaram e que seria uma pena perder», afirma o responsável.
Reunir a totalidade do valor não é tarefa fácil mas o grupo acredita que será possível, havendo, portanto, um intenso ano de trabalho pela frente. Estão a ser estudadas várias formas de conseguir juntar essa verba e uma delas é a organização de eventos. Ainda este mês deverá haver um convívio popular com porco no espeto e para o dia 5 de março está marcada uma tarde de fados.
Quando o órgão estiver recuperado, a intenção é instalá-lo num espaço que foi reservado para esse efeito aquando das últimas obras realizadas na igreja matriz. E quem pensar que será transformado numa peça de museu, desengane-se: a intenção do pároco e da comissão é que venha a ser usado nalgumas cerimónias e concertos específicos «até porque se não tiver uso acabará, novamente, por se degradar». «Como não se trata de um órgão vulgar, quem o utilizar terá de ter formação própria de modo a que seja bem aproveitado em termos artísticos e manuseado com os cuidados normais de uma peça tão antiga», diz o sacerdote, adiantando que, desde a fase de restauro até à utilização, o processo vai ser acompanhado de perto pelo organista titular da Sé de Leiria, João Santos, que além de se ter prontificado foi também indicado pela própria Diocese para esse efeito.
Algumas curiosidades
O órgão de tubos da Igreja Paroquial do Alqueidão da Serra data do princípio do século XVIII, tendo sido construído em Mafra pelo organeiro português Fontanes. Foi oferecido, em segunda mão, à igreja local pelo padre Joaquim Vieira da Rosa. A sua posição inicial era ao fundo da igreja. Mais tarde, foi colocado no coro e posteriormente daí retirado. Entretanto, quando estiver restaurado deverá ocupar uma pequena “capela” construída no interior da igreja no início dos anos 2000, uma sugestão do bispo emérito de Leiria-Fátima, D. Serafim Ferreira e Silva, grande entusiasta da ideia de restauro.
Ao contrário do que alguns possam pensar, o órgão «é pequeno e pobre quando comparado com outros de muito maior dimensão e só tem um teclado», mas nada disso lhe retira o valor estimativo e patrimonial.
Uma das histórias que se contam sobre este instrumento musical remonta à II Guerra Mundial e tem o padre Frazão, um antigo capelão militar, como protagonista. Diz-se que regressado, doente, das trincheiras de França, a primeira coisa que fez quando chegou à sua terra natal, ainda antes de ir para casa, foi tocar no órgão da igreja.
A terminar, mais duas curiosidades: em 1982 o restauro completo desta peça foi orçado em 2000 contos. Carlos Vieira, professor aposentado, na altura militar acabado de chegar do Ultramar, terá sido a última pessoa a animar, de forma regular, missas e outras cerimónias recorrendo ao velho órgão de tubos que agora se espera que ganhe nova vida. Estava-se, então, em meados dos anos 1970.
Foto | Jéssica Moás de Sá