Quem passa à Igreja de São Julião da Mendiga, aos finais de tarde de quarta-feira e aos almoços de domingo, com certeza passará em frente ao camião de Luís Santos, vendedor ambulante de frango no churrasco desde que se lembra. Quem o conhece, mas não pode ou quer encostar, deixa uma buzinadela, que o assador retribui com um aceno, mesmo que o carro já tenha passado. Quem não o conhece, estranha, antes de entranhar. Dos camiões que param e lhe dizem «“Pensámos que era pão com chouriço, nunca tínhamos visto uma coisa destas”», aos turistas que ficam «com a boca aberta a filmar e a tirar fotografias», Luís Santos acredita que, de facto, o seu não é o mais comum dos ofícios e, embora não seja o único camião a vender frango no churrasco, reconhece que é uma profissão muito típica desta região, entre Porto de Mós e Santarém, e que nunca presenciou em mais lado algum.
O “homem da grelha” começou o seu negócio na sua terra natal, Gansaria, concelho de Santarém, a vender frangos no final da missa de domingo. Depois mudou-se para a Foz do Arelho, Caldas da Rainha, onde a adesão dos banhistas era grande. Tinha um atrelado, descoberto, onde assava frangos no verão, mas era um rendimento escasso e sazonal. Quando comprou o primeiro camião, em 1997 (porque «num reboque tens de estar na rua a assar frangos, há frio, chuva, vento e poeiras»), começou a relocalizar-se: primeiro em Alcanhões, depois em Verdelho, Póvoa de Santarém, Azinhaga do Ribatejo, à medida que os habitantes desses lugares lhe pediam. Cada uma tinha um dia diferente, mais ou menos a mesma lógica que emprega agora em Porto de Mós, e muitas vezes eram os próprios presidentes de Junta que lhe pediam umas horas na respetiva freguesia.
Depois de um breve hiato do negócio da venda ambulante de frango grelhado, Luís Santos regressou ao ofício e foram os populares da Mendiga que o requisitaram: «As mulheres, quando me apanharam aqui à quarta-feira, a sair da missa, perguntaram: “Então e o domingo?” E então eu vim para cá, já estou aqui há seis ou sete anos». É a única localidade do concelho que é abrangida pela rota de Luís Santos, que está à sexta-feira à noite em Monsanto, Alcanena, e ao sábado em Abrã, Santarém. Nos outros dias está «de folga, a lavar grelhas, lavar frigoríficos», brinca. É um negócio que, fruto da invulgaridade e da facilidade que tem em centrar-se em diferentes sítios, o vai sustentando: «Isto não é para enriquecer, é para ir vivendo, em vez de aturar um patrão qualquer, aturo-me a mim», explica.
A função invisível do ramo funerário
Irene Matias está há 40 anos no setor fúnebre. É gerente da Funerária Dom Fuas, com duas agências, uma em Porto de Mós, outra na Batalha, e é nesta última vila onde se desenvolve a logística de um trabalho que, considera, «já foi mais incomum»: tanoestética e tanopraxia. A primeira é uma técnica de restauro e maquilhagem do rosto, a segunda prende-se com a conservação do corpo, e são ambas essenciais (e obrigatórias por lei) quando se fala de pessoas recém-falecidas e do processo por que passam entre a morte e o funeral. Processo esse que é assumido por Irene Matias desde que chegou à funerária do marido (já falecido), há quatro décadas, numa altura em que não havia mulheres a trabalhar no ramo, e que vai muito além de umas pinceladas de sombra: «Não é só chegar ali e pintar, há muitas outras coisas que se tem de fazer antes do espelho mostrar. As pessoas não fazem ideia do que está por trás, há muito trabalho na retaguarda, para a preparação, é quase como uma cirurgia. Quase 80% dos produtos que uso num cadáver não podem ser usados numa pessoa viva, são produtos químicos».
Para tal, teve inclusive de tirar alguns cursos, no Instituto de Medicina Legal, em Coimbra, que a habilitassem à função, mas «muito depois», quase 20 anos após a primeira experiência com cadáveres, uma estreia que causaria impressão a muitos, à data, mas que hoje, diz, «já não é um bicho de sete cabeças». No entanto, ainda há que lhe pergunte: «“Não tem receio?” É óbvio que nos primeiros tive, há sempre aquela hesitação de fazer isto ou aquilo. Com os anos nós vamos aprendendo, sabe-se a teoria e depois a prática e os medos também vão ficando para trás», explica. Agora, consegue olhar para um cadáver e perceber o que é preciso fazer, embora seja «sempre um desafio muito grande quando aparece uma situação diferente», como muitas são, faz questão de realçar. Aos 64 anos, assistiu ao acentuado crescimento do setor em Portugal («Antigamente as pessoas tinham muito o hábito de dizer “Fui a um funeral na América e a pessoa estava igual. Hoje em dia já não é preciso ir para a América, nós já fazemos um bom trabalho [em Portugal]»), lidera a funerária fundada pelo marido e diz que, «enquanto tiver saúde», não se vê a fazer outra coisa. A tanoestética e a tanopraxia são atuais componentes fundamentais do setor fúnebre e a reação dos clientes é a certeza de Irene Matias que fez um bom trabalho: «Eu tenho muito gosto em que as pessoas no final me digam “Dona Irene, muito obrigada, pensei que não havia nada a fazer, pelo menos uma pessoa olha e fica com tranquilidade”, e isso é muito gratificante».
Fotos | Bruno Fidalgo Sousa