Depois de um ano sem terem havido as habituais comemorações do 25 de Abril, devido ao surgimento da pandemia, a Revolução dos Cravos, que há 47 anos devolveu a liberdade e a democracia aos portugueses, voltou a ser recordada em Porto de Mós através de uma sessão solene, que decorreu na tarde do dia 25, feriado nacional, no Cineteatro de Porto de Mós. A pandemia e o populismo foram os assuntos que mais marcaram os discursos das forças políticas concelhias na cerimónia.
Democracia e liberdade já viveram melhores dias
No discurso de abertura, a presidente da Assembleia Municipal de Porto de Mós, Clarisse Louro, justificou a relevância de, dois anos depois, se voltar a «evocar Abril» através de uma cerimónia «simples», restrita, com as regras definidas pela Direção-Geral da Saúde, mas carregada de «significado para todos». «É cada vez mais importante lembrar Abril e o seu maior legado: a democracia e a liberdade», disse, considerando que «ambas já viveram melhores dias». Fazendo alusão a um estudo recente que concluiu que apenas 10% dos portugueses acreditam viver em plena democracia, Clarisse Louro alertou para as consequências que podem advir quando o fosso entre eleitos e eleitores é «grande». «O divórcio com a democracia aumenta e abre-se o campo para quem a quer minar, um campo que está a ser ocupado pelo populismo que recupera e semeia no vasto campo fértil das novas plataformas de comunicação, adubado pelo boato e pela desinformação, as mais repugnantes ideias em que assentava a ditadura deposta em 25 de abril de 1974», realça.
Poder local, o mais perigoso inimigo de si próprio
«Quarenta e sete anos depois da restauração da liberdade assistimos ao que de mais corrosivo existe para a democracia», afirmou o líder de bancada do movimento AJSIM na Assembleia Municipal, Mário Cruz, dando como exemplos «a corrupção, o tráfico de influências e a sedimentação e cristalização dos diretórios partidários» que, acredita, têm como único objetivo «perpetuar poderes». Na sua intervenção, Mário Cruz deixou ainda duras críticas ao poder local, aquele que, defende, deveria ser a base da «verdadeira democracia» mas que «porventura, transforma-se, na sua mais perigosa ameaça». «É vital devolver ao poder local a democraticidade que Abril lhe quis sabiamente dar. Não deixar portas abertas aos extremismos. A liberdade e a democracia só sobreviverão se as expurgarmos, sem hesitações, das amarras e das dependências espúrias que se geram na sombra num intestemunhado labor dos gabinetes ou na fria perfídia da insinuação», sublinha.
Pandemia não suspende Abril
Em representação do Partido Socialista (PS), David Salgueiro, lembrou que foi graças à «coragem» dos Capitães de Abril que foi possível perceber a força e resiliência de um povo que até pode estar muito tempo «silenciado», mas que, garante, «jamais a sua alma será esmagada». Depois de mencionar alguns dos direitos adquiridos com a implantação da democracia como «a liberdade de reclamar, de sonhar e de olhar de uma forma atenta para o exercício do Estado de Direito», David Salgueiro, fez uma comparação com a privação de liberdade provocada pela atual situação pandémica, e com aquela que existia no regime que vigorou antes da Revolução dos Cravos. «Hoje evocamos a conquista da democracia, num momento em que a pandemia nos afetou a todos a nível global e fez-nos, novamente, de uma forma irónica, sentir com falta de liberdade, mas apenas de movimentos, porque em termos de pensamentos jamais isso voltará a acontecer», assegurou.
Radicalismo nasce de expectativas não cumpridas
No momento de tomar a palavra, Gabriel Vala, representante do Partido Social Democrata (PSD), começou por dizer que desde abril de 1974 muito se transformou no país, contudo, considera que, grande parte dos objetivos que estiveram na base do 25 de Abril estão «aquém das expetativas», uma culpa que, em grande parte, atribui aos atores políticos que têm estado à frente da governação do país. «Os grandes interesses económicos, a corrupção, a falta de ética e as políticas erradas», são as situações que, acredita, têm despoletado as grandes crises em Portugal e que levam a que o estado da democracia comece a dar sinais de «alguma fragilidade». «Não é isto que os portugueses querem, nem foi para isto que se deu Abril», constata, acrescentando que é com base nessa insatisfação que vão surgindo «forças de bloqueio e de revolta» que, posteriormente, dão lugar a «grupos organizados de radicalismos» que «não abonam nada a favor da estabilidade» e que levam ao «descrédito da política».
Respostas simplistas são campo fértil para os populistas
Coube ao presidente da Câmara, Jorge Vala, encerrar a sessão, num discurso marcado pelo surgimento de novos movimentos, pelas consequências da COVID-19 e, ainda, pelos novos desafios a que a democracia está sujeita. Para o autarca, é a velocidade a que o mundo da tecnologia de informação e da comunicação avançam que tem permitido que se comunique de «forma instantânea» e, garante, é nessa forma de comunicar que reside o principal problema porque favorece «respostas simplistas para problemas complexos». «É o campo fértil para os movimentos extremistas e populistas, hábeis em fazer valer, à velocidade de um disparo, as teorias que requerem reflexão, discussão e ponderação», sublinha. «Numa sociedade com curta memória, o manifesto primário e radical é como lume em feno seco», adverte.
Na sua intervenção, o presidente da Câmara reconheceu também que a chegada da pandemia veio acentuar ainda mais os problemas, já existentes, e que agora proliferam os descontentamentos que «precisam de culpados». O autarca não tem dúvidas de que é precisamente dessa insatisfação que se «alimentam» os movimentos extremistas, transformando-a em ódio. «Embebedam-se de miséria para melhor sustentar a necessidade de reerguer um regime sob as cinzas de uma democracia que dizem doente», afirma, apressando-se, logo de seguida, a sublinhar que «a democracia não está doente», mas que enfrenta, sim, «renovados desafios».