Durante quase uma década, Carlos Silva foi funcionário não administrativo da Junta de Freguesia de Pedreiras, onde mais do que um “canivete suíço” considera que foi um trabalhador polivalente. Era “pau para toda a obra”, o que quer dizer que fazia de tudo um pouco, desde limpeza e conservação de caminhos, serviços de eletricidade, até abrir as covas no cemitério da freguesia, uma função que o obrigava a estar disponível «24 sobre 24 horas, sete dias por semana». Ao longo desse tempo, Carlos Silva enterrou alguns amigos, «companheiros de camaradagem e de convívio», porém foi no funeral de um recém-nascido onde, confessa, se sentiu mais emocionado. «Fiz outros funerais de bebés mas aquele tocou-me mesmo muito no coração, pela proximidade que tinha com a mãe, por ser uma pessoa cheia de vida e que estava muito feliz com a chegada do bebé», conta.
Carlos Silva, de 63 anos, fala sem complexos do trabalho que exerceu durante anos, algo que transparece até pela forma ligeira como aborda o assunto, mas reconhece que nem toda a gente tem o mesmo estofo: «Há muita gente que não aceita, que não é capaz de fazer. Alguns até me dão os parabéns pela coragem e, na verdade, eu reconheço que é preciso ter um bocadinho de coragem [para o fazer]». Além de ter que cavar a sepultura, Carlos Silva era ainda responsável por outras «situações mais delicadas», como ter de fazer o «levantamento de ossadas» para, posteriormente, serem cremadas. «Tinha que lavar os ossos e introduzi-los em urnas mais pequenininhas», descreve. «Há pessoas que vivem no estrangeiro e decidem levar os entes queridos com elas. É algo que exige uma série de protocolos e autorizações», explica, acrescentando que apesar de raras, por vezes, também tinha que realizar transladações para outros cemitérios.
O trabalho era coisa que não lhe metia medo. Porém, Carlos Silva, ainda recorda com detalhe as dificuldades trazidas pela chegada do inverno, em que a tarefa de abrir sepulturas se tornava bastante mais penosa. «Era a chuva que incomodava, era a terra sempre a cair para dentro da cova e nós termos que fazer, às vezes, o dobro ou o triplo do trabalho. As covas enchiam-se de água e nós tínhamos que andar constantemente a retirá-la. Era muito mais chato», conta. Com os terrenos encharcados, por causa das chuvas, propiciava-se a ocorrência de desabamentos, tal como aconteceu «várias vezes», o que obrigava a cuidados redobrados. «Inicialmente usávamos tábuas, mais tarde passamos a utilizar uma forma em chapa que introduzíamos no buraco à medida que o abrimos e que nos dava um bocadinho mais de segurança. Mas mesmo assim, muitas das vezes a parte de baixo esbarrava», explica.
Nunca tinha exercido essa função, nem muito menos imaginava que um dia poderia vir a ser coveiro, mas assume que desde logo aceitou de bom grado a tarefa que lhe foi solicitada. Hoje reformado, devido a problemas de saúde familiares, Carlos Silva lamenta o facto de ter abandonado a profissão. «Tenho pena porque gostava daquilo que fazia», desabafa.
(Este artigo faz parte do Suplemento Requiem da edição 956 d’O Portomosense)