Dizem que “o tempo cura tudo” mas para Maria do Carmo, de 71 anos, o tempo só adensou mais a dor dilacerante que ainda hoje diz sentir: «Quanto mais o tempo passa mais saudade temos. [O tempo] pode curar umas coisas mas há outras que não cura». A morte de um filho é uma delas. Maria do Carmo deu à luz dois filhos e dois filhos perdeu. O primeiro há quase 26 anos mas a forma como aborda o assunto é bastante reveladora de como essa perda ainda continua a ser uma ferida aberta no seu coração. «Enquanto for viva os meus filhos não me vão sair do pensamento. É uma dor que nunca passa», garante.
Natural de Sever de Vouga (Aveiro) mas a residir há vários anos na freguesia de Pedreiras, Maria do Carmo é uma mulher de semblante carregado. O «quartinho» dos filhos permanece intocável, assim como as «roupinhas» que ainda hoje faz questão de guardar, de forma quase religiosa. «Eu sei que não adianta nada mas custa-me desfazer dessas coisas», desabafa. Teve de aprender a lidar com a permanente ausência dos seus filhos e foi obrigada a reaprender a viver com essa dura realidade. «Eu riu-me, ando na ginástica, na piscina e nos cavaquinhos. Mas quando vou para casa, vou no carro e vou sempre a pensar neles», afirma.
Sobre a possibilidade de o período de luto parental passar de cinco para 20 dias assegura: «Nem que passasse um ano ou dois eu me iria conformar». Depois da tragédia que se abateu sobre a sua família, Maria do Carmo entregou-se à fé e é aí que tem procurado refúgio. «Eu tenho fé que os meus filhos onde estão, estão bem. Quem sofre sou eu que tenho muitas saudades deles», desabafa.
O embate de uma notícia trágica
De voz embargada e lágrimas nos olhos, Maria do Carmo descreve com clareza o fatídico dia em que, Jorge Manuel, o filho mais velho, morreu. Na altura, só havia um carro na família e por isso, todos os dias Maria tinha de levar o marido ao trabalho, em Porto de Mós, para depois seguir para o seu. Nesse dia, 19 de novembro de 1995, antes de sair de casa, dirigiu umas palavras ao filho, as últimas, que ainda hoje reproduz com exatidão: «Oh Jorge, eu vou levar o pai. Está aqui a roupinha para tu vestires e está ali o pequeno-almoço em cima da mesa para tu comeres». No regresso às Pedreiras, já depois de deixar o marido, Maria deparou-se com um «estardalhaço» no cruzamento «em frente a casa do senhor Manel Sapateiro». Nunca pensou que fosse o filho mas quando parou o carro e viu que o acidente envolvia uma ambulância e uma motorizada (que o filho conduzia) o seu instinto maternal fê-la pensar sobre essa possibilidade: «Não me digas que foi o meu Jorge!», gritou e do outro lado alguém respondeu: «Sim, foi o Jorge». Nesse momento, Maria do Carmo olha e vê o filho estendido na estrada «praticamente morto»: «Ajoelhei-me ao pé dele e dei-lhe muitos beijinhos mas já não respondia», conta, a soluçar. Jorge tinha 22 anos. O resultado da autópsia revelou que a causa da morte foi «uma costela que lhe perfurou o coração».
Duas mortes, uma família desfeita
Depois da morte prematura de Jorge, a família nunca mais foi a mesma, principalmente o outro filho, Pedro Miguel, que desde a morte do irmão «nunca mais ficou bom». «O meu filho andava muito nervoso. Eles tinham as suas birritas mas eram muito amigos», reconhece. Três anos depois, o destino voltou a pregar uma partida a Maria do Carmo. Contrariamente ao que era habitual acontecer, quando Maria do Carmo chegou a casa já o seu filho tinha chegado e a mãe notou logo que algo de errado se passava com ele. «Estava encostado ao carro, cabisbaixo, e perguntei-lhe o que se passava. Ele respondeu “Não é nada mãe…”», recorda. Perante a resposta do filho, Maria continuou nas suas lides domésticas e assim que regressou à rua verificou que Pedro já não estava. Passado um tempo ouviu o que lhe parecia ser a voz de Pedro mas que na verdade era o barulho dele a vomitar. «Olhei para o quintal e vi que ele estava sentado junto a uma oliveira. Corri para ao pé dele e depois de ver que tinha bebido um frasquinho de um produto para queimar erva, perguntei-lhe: “Oh Pedro o que é que tu foste fazer, filho?”», conta, mais uma vez visivelmente emocionada. Depois de oito dias a lutar pela vida no hospital, Pedro Miguel, de 23 anos, não resistiu aos ferimentos causados pelas queimaduras e acabou por falecer. Ao longo desse tempo a mãe, que todos os dias o ia visitar, manteve sempre a esperança de que pudesse sobreviver. «Eu nunca me convenci que ele se apagasse. Ele falava normalmente, lembrava-se das coisas e nunca perdeu os sentidos», afirma, desolada.
Jorge Manuel e Pedro Miguel faleceram há exatamente 25 e 22 anos, respetivamente. Com a sua morte deixaram uma profunda dor na mãe, que a levou a enfrentar uma «grande depressão». «Isto que me aconteceu levou-me muito abaixo. São coisas que nunca se esquecem», reconhece. Hoje, Maria do Carmo, admite, gosta de acreditar que um dia os seus filhos estarão no céu para a receber. «Posso estar a viver numa ilusão mas esta ideia consola-me», confessa.
(Este artigo faz parte do Suplemento Requiem da edição 956 d’O Portomosense)