Se não está ligado à Investigação ou à Saúde, dificilmente terá ouvido falar em Citometria de Fluxo. Pois bem, esta é uma realidade bem familiar para Ana Vieira, portomosense de 33 anos – quase 34 – e uma das poucas técnicas especialistas de aplicações nesta área em Portugal e também na Península Ibérica.
Natural da freguesia de Pedreiras, Ana Vieira sempre se sentiu fascinada pelas áreas da Biologia e da Saúde. No ensino secundário optou de forma natural pelo curso de Ciências e Tecnologias e no ensino universitário confessa que gostava de ter tido a oportunidade de colocar Medicina entre as opções, mas a falta de média impediu-a. Contudo, o gosto pela área prevaleceu e fez com que optasse por um caminho que considera “híbrido”, por também ter associada a parte da investigação. Licenciou-se mais tarde em Análises Clínicas e Saúde Pública na Escola Superior de Saúde e Tecnologias de Coimbra e teve o primeiro contacto com a Citometria de Fluxo através da exigente cadeira de Imunologia.
A Citometria de Fluxo, define, «é uma técnica mais ou menos recente que se utiliza tanto em investigação como, por exemplo, em diagnóstico. Através dela conseguimos diagnosticar tudo o que são cancros líquidos (linfomas ou leucemias, exemplifica) e uma simples amostra de sangue permite-nos estudar mais de 40 parâmetros diferentes».
Em entrevista a O Portomosense, Ana Vieira recorda que apesar de a taxa de aprovação naquela disciplina ser reduzida, sempre gostou da matéria e da forma como o seu professor lecionava. Assim, decidiu arriscar num estágio optativo e «fora da caixa» que durou cerca de um mês. Cada vez mais interessada por esta técnica, e identificando ali uma oportunidade para prosseguir a sua carreira profissional, agarrou mais tarde a possibilidade de desenvolver a sua tese. O projeto que levou a cabo entre o terceiro e o quarto ano em laboratório permitiu-lhe que se especializasse e que agarrasse uma oportunidade de trabalho no Instituto de Medicina Molecular, em Lisboa. «Na altura o meu orientador falou-me dessa vaga e pensei “Porque não? Não tenho mais nada”. Como tinha bem claro para mim que não queria fazer colheitas, enviei o meu currículo e entrei. Comecei logo a trabalhar a seguir à licenciatura, corria o ano de 2011», detalha.
Satisfeita com a primeira oportunidade no mercado de trabalho, sobretudo depois de se aperceber da situação precária pela qual alguns colegas de curso passavam – muitos não conseguiram emprego na área e outros trabalhavam nas colheitas a recibos verdes – mudou-se para este instituto da capital onde iniciou funções como técnica de laboratório de serviços. Neste cargo, Ana Vieira prestava apoio aos investigadores mas não fazia investigação “propriamente dita”. Por ali ficou durante cinco anos, mas apenas precisou de três para se tornar responsável pelo serviço de Citometria de Fluxo. A sua rápida ascensão e profissionalismo fizeram com que em 2017 fosse convidada para abrir o mesmo tipo de serviço na Fundação Champalimaud.
Naquela altura, conta, «a Fundação Champalimaud estava a começar a ser falada principalmente por causa dos tratamentos do cancro que fazia. A parte da investigação ia ser iniciada e este foi um projeto que me deu bastante gozo. Acabei por ser eu a responsável por abrir aquele serviço e colocar tudo a funcionar».
Ana Vieira esteve nos laboratórios desta fundação até 2020, ano marcado pela rápida dispersão da pandemia de covid-19. Como estava já grávida do seu primeiro filho e os tempos eram de indefinição, devido à “novidade” que era a doença, foi, como tantos outros trabalhadores, para casa, onde teve o primeiro contacto com a modalidade remota.
Aproveitando a oportunidade concedida pela Fundação Champalimaud, regressou a Porto de Mós. O seu filho nasceu em agosto e em março de 2021 teve que voltar a Lisboa para realizar, de forma presencial, as mesmas funções. No entanto, poucos meses depois deste “retorno à normalidade” recebeu uma mensagem através do LinkedIn que lhe iria mudar a vida. Uma empresa recrutadora encontrou o seu perfil e propôs- lhe um novo desafio: trabalhar para o setor corporativo. «Quando recebi este contacto estranhei, porque nem os meus dados tinha propriamente atualizados, mas o que me chamou à atenção foi o facto de até então só ter trabalhado numa vertente mais académica, na maioria com bolsas, e nós sabemos como é precária a carreira académica em Portugal, em que normalmente não temos acesso a contratos… Portanto decidi aceitar o desafio de me juntar à Cytek Biosciences, a empresa para a qual trabalho até hoje e que é a empresa que faz as máquinas que eu já costumava utilizar», esclarece.
O dia a dia
Neste momento, o dia-a-dia de Ana Vieira passa essencialmente por prestar apoio aos investigadores mas sob o ponto de vista da empresa que produz e comercializa as máquinas. Opera desde o nosso concelho e é a partir de cá que presta apoio a toda a Europa, de forma remota, e também em Portugal, país por onde se desloca de norte a sul, apenas quando necessário, para dar formação ou prestar assistência mais pormenorizada aos investigadores e clientes da Cytek Biosciences.
Trabalhar a partir de casa pode ser uma tarefa árdua e Ana sabe disso. Para se organizar, agenda mensalmente no calendário as reuniões com os seus clientes, com os quais também se encontra de forma digital pelo menos uma vez por mês. Mas para além destas reuniões, existe uma caixa de e-mail partilhada pela sua equipa onde chegam recorrentemente dúvidas que ocorrem durante as investigações e experiências dos utilizadores da sua máquina. Quando o resultado não é o esperado, Ana Vieira entra em ação e analisa criteriosamente tudo aquilo que o utilizador fez. Detetado o lapso, sugere alterações de modo a conseguir proporcionar aquilo que o investigador espera encontrar e ajuda a preparar ao detalhe a próxima experiência.
90% dos seus clientes são investigadores, mas porquê? «Na área clínica tudo o que é diagnóstico já está padronizado. Ou seja, já foi estudado, antecipado e registado. E a maioria das pessoas com quem eu trabalho são mesmo os investigadores que procuram coisas novas e quando as encontram têm de perceber se aquilo que vêem é real ou se foi fruto de algum erro no processo. No fundo, um técnico especialista de Citometria de Fluxo tenta distinguir aquilo que é real daquilo que pode ser uma nova descoberta científica», afirma. «Depois de tudo isto, também temos as reuniões internas da empresa, passo parte do meu dia em chamadas, em várias reuniões, embora também faça produção de conteúdos para o nosso site. Como tenho uma posição remota, pedem-me para publicar conteúdos científicos e para fazer vídeos explicativos para o nosso portal educacional, onde mostramos às pessoas todas as etapas de uma experiência. Por fim, e pelo facto de esta técnica ser relativamente recente e a empresa para a qual trabalho ter contribuído para uma mudança do paradigma associado à Citometria de Fluxo, sou também convidada para dar palestras sobre o tema», refere.
O futuro
Feliz com aquilo que faz e totalmente adaptada ao trabalho a partir de casa, Ana Vieira não pensa “mudar de vida” tão cedo. «Quando o objetivo é cumprido, quando eu entrego o meu trabalho ao cliente, quando envio o e-mail final, o sentimento é ótimo, e o facto de eu saber que nesta empresa existe praticamente todos os anos a possibilidade de subir dentro da minha categoria – ao ser valorizada pelo meu trabalho – e que também existe a possibilidade de acumular outras funções, faz-me afirmar que consigo ver-me a fazer isto a longo prazo», termina.
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