Corria o ano de 1978. A aldeia de Pedreiras não era como hoje a conhecemos: o adro da Igreja Velha ainda não tinha sido requalificado, faltava o atual Centro de Saúde e a residência paroquial ainda estava por construir. Foi, aliás, devido a essa indecisão sobre a localização da “casa do padre”, como lhe chama a septagenária Maria da Natividade (que todos conhecem como Tiva), que nasceu, há 45 anos, o que é hoje o Rancho Folclórico das Pedreiras. «Começámos numa brincadeira e acabamos a sério», conta com um sorriso.
Com 74 anos «acabados de fazer», Tiva foi uma das fundadoras do coletivo. E lembra-se bem desses tempos, em 1977, um ano antes da oficialização do projeto: «Uns queriam-na aqui», explica, à margem do XXXIX Festival Nacional de Folclore, apontando precisamente para onde decorria o certame, organizado pelo rancho que ajudou a construir, no atual Salão Paroquial. «Outros ali, onde ela está, do lado de lá da Igreja», continua. «E o que é que nós nos lembrámos? De fazer angariações para sermos nós a vencer, para ser ali, a ver se se arranjava fundos, e foi aqui neste canto que nós fizemos a primeira [atuação]», contou a O Portomosense. O “canto” de que fala é precisamente o largo que divide o Salão Paroquial da Igreja Matriz, onde muitas outras atuações acabaram por se realizar, incluindo vários Festivais Nacionais de Folclore. E, feitas as contas, a “casa do padre” acabou mesmo por se instalar do outro lado da Igreja Matriz, pelo que a primeira missão do Rancho acabou por ser cumprida ainda antes deste se formar “no papel”, no dia 2 de setembro do ano seguinte.
Com Tiva estiveram muitas outras pessoas. O tempo encarregou-se de afastar alguns destas lides, de trazer outras, claro, mas, dos primórdios, ficaram três: a par de Maria Natividade, também Armando Nascimento e José Bernardino, ou apenas “Zé”, continuam hoje a ser os representantes no grupo de uma época de muito trabalho e esforço (o Rancho destaca ainda Artur Simões e Paulo Martinho, dois dos fundadores que até há bem pouco tempo estiveram com o grupo). Em cima do palco do XXXIX Festival Nacional de Folclore, no passado dia 9 de setembro, foram homenageados com uma placa evocativa dos seus 45 anos “de serviço” ao rancho; fora dele, relataram ao nosso jornal os desafios dos primeiros tempos. Tiva lembra-se, por exemplo, de passar das «saias pretas e blusas brancas» para os trajes mais característicos, da inscrição na Federação do Folclore Português, de «acartar pessoal para os ensaios, que não havia muita gente com carro». «Passou tudo por mim, lutei muito, gastei muito dinheiro», relata, de coração cheio. Tudo em boa causa: «Eu adoro isto, está-me no sangue, mesmo, muito, porque é uma coisa que eu criei. Por isso é que isto está aqui dentro», frisa, apontando para o peito. Já Armando Nascimento, de 63 anos, lembra-se de «andar de casa em casa “de velhotes” para fazer recolha de músicas». «Velhotes que já morreram há cinquenta anos, hoje, os filhos destes senhores já são velhos e já não sabem o que os pais passaram», faz questão de frisar, notando que «das coisas mais importantes é realmente tentar deixar de alguma forma salvaguardado todo este trabalho» de investigação. Tudo ouvido e recolhido, fizeram «um apanhado» e um cancioneiro. Ou seja, «todas as [músicas] que temos é desde quase o início, desde a recolha», explica Zé Bernardino, que começou a dançar no rancho aos 17 anos. Novamente numa «brincadeira» com colegas «da terra», uma “brincadeira” que nunca chegou a terminar. Mas com «menos pessoal, a diferença é só isso, o pessoal não se interessa muito por ser o folclore», acredita o sexagenário.
Hoje, o grupo tem 50 elementos, «mas a juventude está virada para outras coisas». Desta feita, quem o diz é Armando Nascimento. Aliás, no início havia «uma lista de espera», face à grande adesão que estavam a ter. Mas «hoje em dia a juventude não é como era dantes, além de terem muito menos atividades [dantes] e saídas, havia muito mais entrega, mas é a vida, a vida muda, nós temos de nos adaptar às circunstâncias, o rancho das Pedreiras era conhecido por ser um rancho de famílias, todos tinham cá os filhos, mas eles foram crescendo, foram-se formando», e acabaram por se despedir das lides do folclore. Com uma grande bagagem, já que Armando Nascimento acredita que «um grupo folclórico, como qualquer associação, funciona um bocadinho como uma escola». «As pessoas têm uma reação diferente em relação àqueles que nunca participaram no associativismo, têm uma visão diferente, são mais compreensivas, e isso aprende-se com estas coisas, não é só dançar», explica
Armando Nascimento gostaria «que as gerações vindouras conseguissem preservar, manter e respeitar o que foi feito». Até agora, os sinais são positivos: a própria filha recebeu durante o XXXIX Festival Nacional de Folclore a placa comemorativa dos seus 25 anos no grupo onde chegou «com 5 ou 6». De igual modo, Tiva considera a atividade do Rancho «muito importante»: isto é diferente, dá mais vida, mais saúde, alegria, convivem uns com os outros», diz. Também ela tem família na banda. Por exemplo, a “sobrinha emprestada” e atual presidente, Fátima Amado. Afinal, como diz esta última, é uma família, «até porque é composto por famílias. E amigos, que se juntam», e que passam a pertencer ao “agregado”. Daí que Tiva acredite que o legado da fundação «está bem-entregue, muito bem-entregue» à nova geração do Rancho Folclórico das Pedreiras.
45 anos a pensar nos 50
Há 33 anos no grupo, Fátima Amado vive-os «como se fossem mesmo 45», «porque ter um grupo ativo durante 45 anos e ainda ter três membros que foram fundadores é um orgulho para qualquer coletivo», ela que até sucedeu no cargo a outro dos fundadores, Artur Simões. Pela atual presidente já passaram muitos festivais e este ano não foi exceção: deu-se a 39º edição do certame a que o Rancho já habitou, anualmente, os habitantes das Pedreiras. Desta feita com quatro ranchos a atuar, além do anfitrião: Grupo Folclórico Casa do Povo de Arões; Rancho Folclórico de Paranhos da Beira; Rancho Folclórico Ribeira de Celavisa; Rancho Folclórico do Vale de Santarém. Os moldes, ainda assim, «não mudaram muito», na opinião de Zé Bernardino: «A gente mantém sempre o nosso padrão de bem-receber», considera o fundador.
Para este certame em particular, escolheu-se de igual modo um tema: as Festas de São Sebastião. O que explica a presença, como conta Fátima Amado, do «andor dos bolos, as ofertas, o andor com os santos e a Banda, era imprescindível em qualquer festa», e daí o convite à Banda Recreativa Portomosense para abrir a noite de atuações. Uma escolha que teve um claro propósito, como relata: «Fizemos questão de fazer das Festas o tema, eles [os três fundadores ainda ativos] têm 45 anos no grupo e a gente quer que eles cheguem aos 50. Foi uma maneira de celebrar os 50 anos um bocadinho antecipados, na esperança que eles fiquem connosco».
Portanto, o objetivo é continuar, sem esmorecer, é essa a opinião dos três fundadores e também da presidente. Com menos membros, «porque as pessoas também começam a ter outras vidas, a vida também é diferente». «Mas o objetivo principal é a dedicação, o orgulho, o dançar, o cantar, o viver o folclore, isso eu acho que não mudou, continua igual», acredita.
Foto | Bruno Fidalgo Sousa