Bruno Fidalgo Sousa

São cinco horas da manhã e o Lena ainda corre

23 Nov 2023

Alguém está a apitar na avenida, os carros que fazem o trânsito atrapalham o próprio trânsito, é assim a vida

São seis horas da manhã e a vila já não dorme. Entre as Serras acordam «as bestas, os homens e as crianças adormecidas», como escrevia Maria Velho da Costa, mas, aqui, não são as mulheres que os despertam. É o próprio dia. O Lena ainda não parou de gargalhar nas pedras do caudal, como esteve toda a noite, como está todas as noites de inverno, chorando para que não chegue o verão.

São sete horas da manhã e já há notícias na rádio. Algures sobre a Serra de Aire o sol espreguiça-se, indicando aos condutores para que lado é o leste. As eólicas ainda estão paradas, as mós ainda estão adormecidas.

São oito horas da manhã e já recolheram o lixo da nossa rua. Dois homens, os mesmos de sempre, um que deixa o camião ligado enquanto puxa e empurra o contentor, o outro que se desliga do mundo enquanto perfaz 480 minutos invisíveis de trabalho.

São nove horas da manhã e as crianças já chegaram à escola. Fumo o meu cigarro enquanto passa uma mulher de hijab, com o seu filho mais velho, homem, e a sua filha mais nova, mulher. Ela também usa hijab e quando passar às seis da tarde vai continuar a usar. São uzbeques, perguntei e obtive resposta. Estão na vila há pouco menos de dois meses. E todos os dias a mãe acompanha-os à escola. Para casa, regressam sem ela, pela mesma rua de calçada, com o mesmo semblante dos que vêm de fora para aqui encontrar um passeio que não seja estrada.

São dez horas da manhã e é sexta-feira, logo há mercado, logo há gente.

São onze horas da manhã e alguém está a apitar na avenida, os carros que fazem o trânsito atrapalham o próprio trânsito, é assim a vida. É meio-dia e já acabou o mercado. Porto de Mós fica marcada. Para a semana há mais, com os mesmos lugares de estacionamento.

É uma da tarde e ninguém sabe onde almoçar. São duas da tarde e regressa-se ao emprego de estômago cheio, e ficamos a pensar na sesta para a qual não há tempo e nos sonhos para os quais não há espaço. Arranca o primeiro autocarro roxo vindo do Tribunal.

São três da tarde e algures entre Serras um pássaro teimou em voar, um qualquer javali fez de um qualquer caracol sem-abrigo, e aquele muro de pedra seca não vai voltar a estar de pé da maneira que quis o artista original.

São quatro da tarde e passa por mim o último autocarro roxo, que chega ao Tribunal às 16h35. Pelo que agora vou esperar pelo primeiro autocarro vermelho, às 9 horas do dia seguinte, no Tribunal.

São cinco da tarde e e a esplanada do Parque está fechada. São seis da tarde e as crianças e jovens retomam a casa, ansiando pelo dia em que não serão mais crianças e jovens e em que não mais terão de retornar – o mundo é tão imenso e nós somos tão pequenos, afinal.

São sete da tarde e não há espetáculo no Cineteatro. As pessoas que ali se amontam estão somente sentadas à espera que a cortina desça sobre o palco. É assim a vida.

São oito da noite e o Castelo tem uma nova coloração, amarelo como a Ucrânia, vermelho como o Natal ou rosa como a prevenção. Eu sou daltónico, mas os torreões continuam glaucos. Com sorte, em dias de céu limpo, não se vê o mar. Vê-se a Serra.

São nove da noite e alguém escalou até ao rooftop do hotel para gritar a palavra “mamarracho”. Alguém ouviu, lá de baixo, e gritou também. São dez da noite e está um homem sentado junto à Rotunda das Mós, com as mãos na cabeça, qual pensador de Rodin, pensando, sim, no quão pouco tempo falta para amanhã.

São onze da noite e ambas as esplanadas do Parque estão fechadas e então vamos embora.

É meia-noite e adormece a Vila Forte. O Lena ainda gargalha, única viva alma ao relento, há uma única mulher à janela, e há um único guarda-rios. E há ainda dois homens que se preparam para recolher o lixo, uma família uzbeque que se prepara para o dia seguinte. A rota dos autocarros será a mesma de sempre, as crianças e jovens voltarão a viver o mesmo de sempre, o Cineteatro não terá os filmes de sempre. Disse-me o Lena, esta manhã, quando parou para refletir e se apercebeu que neste concelho é ele a única corrente que se move. O resto vai ao seu sabor. É assim a vida.

São seis da manhã e já não dorme a vila.