Às quartas, a feira é no Juncal. Nos outros dias, Francisco Sousa e Neuza Aires galgam outras paragens, outros mercados, mas regressam sempre à vila ao fim da tarde. Moram no Juncal há 18 anos, mas dizem ainda sentir na pele a discriminação no que toca a direitos tão básicos como arrendar casa ou arranjar trabalho. Já João Simão, sapador na Câmara Municipal de Porto de Mós, não encontra essas diferenças na vila sede do concelho, onde diz já ser «conhecido», mas confessa que, quando não é esse o caso, o olham «de lado». Os três são apenas uma pequena parcela das mais de mil pessoas de etnia cigana a habitar no distrito de Leiria, segundo o último Estudo Nacional sobre as Comunidades Ciganas (datado de 2014), uma parcela ainda menor quando colocada ao lado das 52 mil que o Conselho da Europa estimou estarem a viver em Portugal em 2022. E os três são portugueses, nascidos e criados, apesar do organismo estatal responsável pela integração das comunidades ciganas ainda ser o Alto Comissariado para as Migrações. É que a grande migração, com a chegada da comunidade cigana a Portugal, tem mais de cinco séculos de história – a primeira lei que decreta «que não entrem ciganos no reino e saiam os que nele estiverem» data de 1526; quase meio milénio passado, e a última lei discriminatória sobre a comunidade foi escrita em 1920, determinando uma especial vigilância sobre os «nómadas». Lei que está ainda hoje em vigor (artigo 81 da XVII secção).
“Quer seja cigano, quer não seja, toda a gente é humana”
O Dia das Pessoas Ciganas celebra-se internacionalmente a 8 de abril, e pretende dar a conhecer a cultura e história da comunidade, e promover a sua integração na sociedade. Uma integração que, de acordo com João Simão, está a acontecer, «pelo menos com a juventude». Já para a família Sousa, «há sempre o apontar», «o racismo». Houve, contudo, uma evolução, «já não existe tanto racismo como havia, por exemplo, há 50 anos», explica Francisco Sousa, «[o indivíduo cigano] está um bocadinho mais integrado na sociedade, mas há sempre o porquê». «Não estamos [integrados] a 100%, para aí a 50%», acredita. Ao seu lado, a esposa dá um exemplo: «Havia aqui duas casas para arrendar, a gente pediu para arrendar ao nosso filho, como ele é jovem, [o senhorio] andou, andou, e agora arrendou uma [a outra pessoa], passado cinco ou seis meses arrendou outra, mesmo aqui ao pé, e ele conhece o meu filho desde pequenino», explicou. «Disse que não era para arrendar», completa Francisco Sousa, «alugou a outras pessoas sem serem ciganos. Até mesmo para arranjar trabalho, se disser que é cigano, não querem», explica.
Os exemplos são inúmeros: «Estão quatro ou cinco ciganos ali no café, fizeram um bocadinho de barulho a mais, “são ciganos”, às vezes estão cinco ou seis ou sete que não são ciganos, o café é todo deles», revela Francisco Sousa. «Por isso é que eu digo que o cigano é sempre apontado, sempre, é abaixo de cão. Se disseres que és cigano, dão-te logo o corte, não te dão oportunidade, assim nunca chega a conhecer a pessoa, o mal está aí», diz.
Já João Simão, de 43 anos, tem uma opinião contrastante, embora confesse que seja «um bocadinho mais complicado arranjar trabalho». O sapador confessa que as pessoas «ficam estranhas se virem um cigano a trabalhar» em posições menos típicas – ou menos estereotipadas –, mas nunca teve problema algum, relata. Procura, sim, mostrar-se como «um exemplo» para os filhos: «Eu mostro as coisas para eles verem que isto não é um bicho de sete-cabeças, este é um trabalho como outro qualquer». Os filhos «estudaram, têm o 12.º ano cada um», e um deles é inclusive sapador, como o pai. Mudanças que também têm acompanhado a cultura cigana ao longo das décadas.
Hoje, «as raparigas já andam a estudar», quando «antigamente chegavam aos 15 anos e saíam», exemplifica João Simão. Também Francisco Sousa e Neuza Aires partilham dessa opinião: «Uma cigana há 30 anos não vestia calças, hoje em dia já veste como outra pessoa qualquer, e há 30 anos tinha de se manter as tradições. E há muitos ciganos casados com pessoas que não são ciganas, ciganas juntas com pessoas que não são ciganos», explica o patriarca. Essa, acreditam, é uma mudança positiva, que vai ao encontro da normalização da comunidade com a restante sociedade portuguesa. Sem nunca desvirtuar, realçam, o que são: «Eu tenho orgulho daquilo que sou, sou sempre cigano e nunca deixo de ser», garante João Simão. E, continua: «Quer seja cigano, quer não seja, toda a gente é humana».
A discriminação “já vem de há muitos anos, e por isso é que não deixam evoluir”
Francisco Sousa e Neuza Aires dão o exemplo de Israel Paródia, que poderá vir a ser o primeiro médico abertamente cigano em Portugal, para explicar «que um não-cigano tem outro acesso, entra com mais facilidade e o cigano se for preciso metem-no um bocadinho para o lado, só se for mesmo um gajo muito bom, aí vão buscá-lo», diz este último. Pode ter melhorado, mas os números apontam para um fosso ainda grande entre a comunidade cigana e a restante sociedade: em 2021, 62% dos inquiridos na comunidade cigana disseram sentir-se alvo de discriminação, quando em 2016 a percentagem foi de 47%. É algo enraizado, acredita Francisco Sousa: «Isso já vem de há muitos anos, e por isso é que não deixam evoluir».
De há 500 anos para os dias de hoje, a discriminação racial perante o povo cigano tem deixado a sua marca: desde a própria língua, com idiomas e provérbios (“com um olho no burro e outro no cigano”), aos mitos estereotipados que ainda prevalecem no imaginário do povo. A questão do sapo à porta da loja (que provocou alguns risos nos entrevistados) ou o “mito” do Rendimento Social de Inserção (RSI) – quando o Polígrafo SAPO já revelou que apenas 3,8% dos beneficiários de RSI são de etnia cigana –, são pequenas vicissitudes entre os exemplos dados pelos juncalenses, e que culminam num grande entrave para esta comunidade: «Não dão hipótese às pessoas, e às vezes as pessoas tornam-se revoltadas», acredita Francisco Sousa. E justifica: «Às vezes dizem que os ciganos são maus, são isto, são aqueloutro. Às vezes não são maus, às vezes tem a ver com o sistema conforme eles também são rejeitados».
E como mudar esse panorama? «Só a nível do Estado», considera o patriarca, «mesmo a nível de arrendar casas, o próprio Estado ir diretamente com pessoas da Segurança Social, irem elas diretamente alugarem casas, para a pessoa [cigana] ter acesso a uma vida normal». É uma ideia de Francisco Sousa para suavizar a situação. E rejeita outro mito relacionado com habitação: «É sempre isso [que dizem], ou não pagam, ou partem as casas. Não acontece nada, aliás, falham mais aqueles que não são ciganos», acredita. E como se sente quando esse panorama em nada se altera? «Às vezes uma pessoa sente-se um bocadinho inferior, frustrado», considera. É, afinal, «uma luta já de há muitos anos». Mais de 500, aliás. Cinco séculos. Embora Francisco Sousa considere que «o mundo está feito assim, infelizmente», a história da comunidade cigana em Portugal bem demonstra que o mundo, afinal, se tornou assim. «O cigano não é nenhum bicho, é um ser humano como outro qualquer», conclui o juncalense.
Fotos | Bruno Sousa
Revisão | Catarina Correia Martins