Um mês depois do seu desaparecimento, há familiares, amigos e conhecidos do tenente-coronel António Esperança Fiel que confessam ter ainda dificuldade em acreditar que o companheiro de bons e maus momentos partiu para a sua derradeira viagem. O militar de 53 anos, natural da Ribeira de Cima (Porto de Mós), travava, há pouco mais de um ano, a maior batalha da sua vida e, apesar de nela ter empenhado todas as suas forças, com coragem e otimismo dignos de registo, a doença acabou por ser mais forte e vencer. Muitos sabiam da grandeza do desafio, mas acreditaram sempre que seria possível ultrapassá-lo. Afinal, como diz o também tenente-coronel Carlos Guerra da Silva, companheiro de armas e seu “irmão de coração”, «o Fiel era uma força da natureza»…
Prestes a regressar ao estrangeiro, onde se encontra em missão, é com um misto de profunda tristeza, mas também de indisfarçável orgulho, que Guerra da Silva fala do seu “irmão” Fiel. «Não lhe posso chamar amigo, mas irmão. Aliás, toda a gente do nosso curso me dá os pêsames como se eu fosse da família, porque sabem que sempre fomos como irmãos. Havia muita cumplicidade entre nós», sublinha, recordando uma caminhada conjunta, iniciada há 30 anos quando entraram para a Academia Militar e aí se conheceram. «Fizemos o percurso militar na mesma arma, quase nos mesmos locais. É um irmão, sempre foi».
Guerra da Silva conhece ao pormenor o percurso do militar portomosense e é de uma assentada que evoca a sua carreira. Datas, promoções, postos, condecorações e missões, tudo surge num ápice, com orgulho e entusiasmo, mas, quando lhe pedimos para nos falar do militar e do homem, aí a coisa complica-se. Por segundos, a voz fica embargada e a meio da primeira frase o experiente tenente-coronel do Exército Português faz uma brevíssima pausa, como que para recuperar o fôlego. A missão que lhe entregamos é dura para quem acaba de perder um “irmão”, mas num instante retoma o registo inicial. O “dever” fala mais alto que a emoção e tendo, desde o nosso primeiro contacto, assumido como um imperativo moral falar do seu companheiro de armas e, dessa forma, permitir que mais portomosenses conheçam o percurso e a personalidade deste «distinto, mas discreto filho da terra», começa por explicar que «é sempre difícil definir um camarada», porque, como diz, «para nós os camaradas são sempre os melhores do mundo e o Fiel assim era».
Para este oficial superior, a carreira e o currículo de António Esperança Fiel falam por si: «Um militar que, ao fim de 15 anos de serviço, recebe a medalha de mérito de comportamento exemplar, grau cobre, e ao final de 30 recebe a de grau ouro, quer dizer que durante 30 anos foi exemplar em termos disciplinares, como camarada e como profissional. São 30 anos dedicados a uma causa sem um único reparo, uma punição, o que quer que seja. Mas, também, três décadas de louvores e medalhas pelo desempenho de funções em território nacional e, inclusive, no estrangeiro».
«Era um homem sempre bem disposto, amigo do seu amigo, despia a camisola por quem quer que fosse. Humilde, não excluía ninguém em função de posto, raça, ou credo. Por esse país fora, em todas as unidades onde haja sargentos do Exército, se lhes falarem do tenente-coronel, do major, do capitão ou do alferes Fiel todos se lembrarão dele como bem-disposto e um bom camarada. Nunca o vi tratar mal alguém e para nós, do seu curso, foi sempre uma força da natureza. Entre os 90 homens, nunca alguém imaginou que uma doença, algum dia, iria abater o Fiel», frisa Guerra da Silva.
«O desaparecimento do [tenente-coronel] Fiel é uma grande perda para o Exército. Partiu demasiado cedo, até aos 58 anos ainda tinha muito para dar às Forças Armadas», conclui, desolado.
Além de militar de mérito, António Fiel era uma pessoa empenhada na vida da sua aldeia natal, colaborando em todas as iniciativas promovidas pelo clube ou pela comissão da capela. Alguns dos amigos recordam-no «sempre alegre e trabalhador» na prova de downhill, nas tasquinhas, na festa anual e em muitas outras atividades onde era sempre peça importante.
«Extremamente discreto, nunca procurou o protagonismo que o seu estatuto militar lhe poderia valer. Era, apenas, mais um para trabalhar, não havia tarefas menores para si. Fazia o que havia para fazer, e pronto. A humildade, o respeito pelos outros e a educação que herdou no berço acompanharam-no toda a vida», diz quem o conheceu bem.
Luís Sousa, um dos seus grandes amigos, recorda-o como «do mais puro que havia. Um amigo daqueles como já não há». «Mesmo durante a doença, manteve a boa disposição que sempre o caracterizou. Era uma pessoa que puxava sempre pelos outros quando os via menos bem e nem isso ele deixou de fazer neste ano tão difícil», sublinha.
«Perdeu-se um grande militar, mas também um grande filho desta terra, e era bom que os mais novos olhassem para o seu exemplo como profissional e ser humano», dizem a uma só voz os que de mais perto lidaram com ele.
António Esperança Fiel foi a sepultar no dia 13 de maio e a multidão que fez questão de o acompanhar nesse momento derradeiro diz bem da enorme amizade e respeito que todos tinham por si, enquanto ser humano, mas também como valoroso e empenhado militar que sempre honrou o seu concelho.
Currículo exemplar
António Esperança Fiel entrou para o serviço militar obrigatório em 1988. Foi graduado em aspirante miliciano e em 1990 concorreu e entrou para a Academia Militar. Em 1994/95, fez o tirocínio para oficial, tendo sido promovido a aspirante. Foi colocado na Escola Prática de Infantaria e acabou a licenciatura em Ciências Militares no ano de 1995, ingressando no quadro permanente das Forças Amadas, com o posto de alferes. Entretanto, foi colocado no Regimento de Infantaria 15, em Tomar, onde esteve dois anos. Promovido a tenente, em 1998 é colocado na Escola de Sargentos do Exército (ESE), nas Caldas da Rainha, onde fez praticamente toda a sua carreira militar.
Após ter concluído o curso de Educação Física Militar, ficou responsável por toda a formação física dos soldados do quadro permanente de todos os cursos que passavam pela ESE. Esteve ligado a essa área até fazer o curso de promoção a capitão, em 2000. Nesse ano faz uma missão de seis meses na Bósnia Herzegovina. Regressa então às Caldas da Rainha, estando sempre ligado à formação militar como professor de legislação militar, tática de pequenas unidades, logística e armamento. Em acumulação, continuava a chefiar o gabinete de Educação Física Militar, onde era responsável pelos cursos de admissão no Continente e Ilhas.
Na sequência do curso de promoção a oficial superior, é promovido a major. Regressou à ESE, mas logo de seguida faz nova missão no estrangeiro, desta feita no Kosovo. Depois, esteve ainda em Moçambique, como assessor militar na Escola de Sargentos, e encerrou as missões no estrangeiro na Escola de Sargentos de Angola, onde desempenhou idêntica função.
Foi promovido a tenente-coronel e regressou à Escola, afastando-se um pouco da educação física, mas continuando ligado à formação militar, tornando-se ainda responsável da secção de proteção ambiental e segurança no trabalho. Cerca de um ano antes de lhe ser detetada a doença com que viria a falecer, foi nomeado comandante do corpo de alunos da ESE, onde comandava três companhias de alunos, com cerca de 100 elementos cada uma.
A doença interrompe a carreira militar exemplar de António Esperança Fiel, de que são testemunho os muitos louvores e medalhas com que foi distinguido, mas a obra e o exemplo deste portomosense irão perdurar, garantem os seus companheiros de armas.