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Ultramar deixou vidas em suspenso, mas a memória não as suspendeu

2 Maio 2023
Jéssica Moás de Sá

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Jéssica Moás de Sá

2 Mai, 2023

Na Escola Viva de Alvados foi precisamente de vidas que se falou no passado domingo, 23 de abril. Dois dias antes de se celebrar o 25 de Abril, deu-se palco ao percurso trilhado por muitos até que a liberdade derrubasse os muros das colónias. Ultramar, vidas em suspenso – diálogos sobre história integrou as comemorações dos 50 anos do 25 de Abril (que iniciaram em 2022 e prolongam-se até 2024), numa parceria entre a Câmara de Porto de Mós e a União de Freguesias de Alvados e Alcaria. O desafio para dinamizar estas sessões sobre Abril foi lançado a todas as Juntas, mas apenas a liderada por Sandra Martins acedeu ao convite.

Aprofundar mais ainda estes temas e «dar espaço para a partilha» é um dos objetivos destas sessões descentralizadas, que surgiram «na sequência da exposição Porto de Mós e o 25 de Abril: vivências no tempo da Ditadura e da Revolução» (também no âmbito das comemorações dos 50 anos) que passou de igual modo por todas as freguesias, explicou a presidente de Junta. «Eu convidei quatro pessoas que estiveram no Ultramar, em situações distintas, para partilharem aquilo que foi a sua vivência e é com muito gosto que recebo aqui todos os presentes, espero que gostem e espero que surja diálogo, que é para isso que aqui estamos», enquadrou a presidente de Junta.

Antes de dar a voz aos testemunhos, também o historiador portomosense Kevin Soares, membro da Comissão Executiva das comemorações, explicou aquilo que se pretendia com esta iniciativa, não sem antes fazer “uma declaração de princípio”: «Esta sessão é vossa, pretende recolher e registar memórias, vocês é que mandam», pretendendo que fosse uma conversa fluida, onde todos poderiam intervir. «É para falar de tantos e tantos homens que partiram para África, para vos ouvir e aprender convosco. A Guerra Colonial é uma experiência coletiva da sociedade portuguesa, afetou os que foram, mas também quem não foi, afetou as gerações seguintes que ouviam as histórias, filhos, netos, sobrinhos…», sublinhou Kevin Soares.

Lugares diferentes, sentimentos parecidos

Mário Januário esteve em Timor, Nuno Martins foi para Angola, assim como António Afonso. Já José Ladeiro esteve na Guiné-Bissau. As experiências destes quatro testemunhos não foram todas iguais, fosse pelo grau diferente da instabilidade destes países, fosse pelos anos em que foram, no entanto, todos manifestaram sentir que «voltaram uma pessoa diferente» da que eram quando partiram.

O primeiro testemunho a ser partilhado foi o de Mário Januário que, em 1964, quando emigrou para França, achava que provavelmente nunca viria a ter este testemunho para partilhar: «Emigrei para nunca mais me apanharem aqui e na guerra, mas o sofrimento dos meus pais era tal que queriam que viesse cá. Como eu devia ter ido à inspeção e não fui por estar em França, fui considerado desertor. Quando vim visitar os meus pais, achava que vinha sem darem por mim, mas mal passei a fronteira em Espanha, um homem fez subir um crachá da PIDE e disse que se me portasse bem, não me acontecia nada de mal e foi a minha sombra até Vilar Formoso», contou. Depois disso esteve preso e fez a recruta. Foi a seguir que o destinaram para Timor, um destino, ainda assim, «de sorte, onde só havia guerra com os mosquitos». No bolso, levou um terço que a mãe lhe colocou e que o «acompanhou» em todo o percurso.

Nuno Martins foi para Angola a 20 de novembro de 1965 e regressou a 23 de janeiro de 1986. Por cá deixou a sua esposa, ainda hoje, que também recordou esta altura das suas vidas, lembrando «a grande declaração de amor» que o marido lhe fez antes de partir para África». «Eu estive mesmo numa zona de guerra, mas tive sorte porque nunca tive problemas, nunca estive em combate, todo o plantão que foi, voltou», recordou. Por cá, Conceição Martins, além de viver com os sentimentos de «saudade e medo» bem presentes, «rezava muito» para que tudo corresse bem ao seu companheiro e já reconhecia ao longe as cartas que recebia de Nuno Martins.

António Afonso foi «fechar a guerra», uma vez que foi para Angola em setembro de 1974. «Estive primeiro num sítio que se chama Beira Baixa e depois fui para Luanda e aí é que foi uma autêntica guerra, pelo que dizem as estatísticas, morreram mais pessoas nesse último ano, em Luanda, do que nos anos anteriores», frisa. Nos bairros de Luanda, eclodiam «os movimentos de libertação» que «levaram a uma destruição total». Na opinião de António Afonso, apesar do 25 de Abril ter trazido a libertação dos povos, algo muito benéfico, a gestão feita em Angola levou a que acontecesse «precisamente ao contrário».

Em março de 1965, José Ladeiro fez a recruta, depois, já sem se lembrar bem «o porquê», foi para escriturário. Foi como escriturário que partiu para a Guiné-Bissau e ficou num quartel que se assemelhava a «uma fábrica»: «Apitava de manhã para entrar, ao meio-dia para o almoço e depois para voltar para o trabalho até às 18 horas. Era tudo oficinas de mecânica». «Trabalhava num escritório, os sargentos precisavam desta ou daquela peça, faziam requisições e eu aviava», lembra. Dali, passou «para a chefia onde só estavam oficiais e sargentos», onde também foi «feliz, nem parecia tropa, eram todos bons chefes». Por cá também ficou a namorada, Conceição Ferreira, que lembrou o momento em que o amado estava para regressar. «Eu estava em Lisboa na altura, mas ia voltar para casa, como ele estava mesmo para chegar, perguntei à minha mãe se podia ficar lá a esperar por ele, e ela disse-me que não, “para vir dois dias antes e voltar dois dias antes”, para não fazer nenhuma viagem com ele», recordou, entre risos. Esta foi uma das memórias comuns às esposas, uma altura em que os namoros eram supervisionados pelos pais. No fundo, o reflexo do que era a vida na altura, uma “vida suspensa” pelas escolhas que não eram feitas pelos próprios.

Foto | Luís Vieira Castro

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