Caro leitor, peço-lhe que faça a seguinte reflexão: já imaginou se não soubesse ler? Como seria a sua vida se não conseguisse decifrar as letras de uma palavra? Como seria se não tivesse a capacidade de interpretar uma frase escrita e a mensagem que está por detrás de um texto? Provavelmente nunca pensou sobre isso mas atrevo-me a antecipar uma resposta: a sua vida seria seguramente muito diferente. Mais condicionada e mais dependente.
Hoje, quando se assinala o Dia Internacional da Alfabetização, data criada pela ONU e pela UNESCO com o objetivo de que «assuntos e questões ligados à alfabetização fossem discutidos», trazemos-lhe dois testemunhos de quem não teve a oportunidade de se alfabetizar e um outro de quem, já na idade adulta, quis aprender. Escrevemos este artigo com um sentimento agridoce, por sabermos que Emília e Maria da Graça nunca o conseguirão ler.
Não sabia ler mas queria ser professora
De sorriso simpático, Emília Cordeiro recebeu-nos na sua casa, na Mendiga, e diz-se pronta para contar a sua história. A risada fácil esconde, contudo, uma mágoa que ainda hoje carrega consigo. Nunca aprendeu a ler nem a escrever. Os tempos eram outros e as prioridades também. «É triste, não é? A gente não saber ler…», pergunta-nos, em tom de lamento, como quem não espera uma resposta e quase que a falar para si própria. Nasceu há 89 anos no Alqueidão de Arrimal, numa família de seis elementos, numa altura em que «não era obrigatório as meninas saberem ler» e em que, na escola, «só havia cadeiras para os meninos». Tinha duas meias-irmãs e um irmão, o único que tinha autorização para ir à escola, enquanto as raparigas iam trabalhar para o campo, guardar as ovelhas. Nunca pensou em pedir aos pais para frequentar a escola mas o desejo estava lá. «Gostava de saber ler, essa ideia veio-me muita vez à cabeça», confessa. Apesar disso, Emília não guarda rancor dos pais, sabe que a decisão que tomaram foi fruto da época.
Toda a vida foi empregada doméstica mas o seu sonho era outro: ser professora. O sonho, à época quase obsceno, guardou-o sempre para si, num lugar profundo. «Queria poder ensinar os outros mas como não sabia ler nem escrever, não podia fazer nada. Cheguei a pensar: “Mas o que é que eu estou a fazer neste mundo? Não faço nada com jeito”». Já em adulta, teve a oportunidade de aprender mas a tentativa revelou-se infrutífera e acabou por desistir. Hoje em dia, aprender já não faz parte dos planos. «Se não aprendi, também já não aprendo», diz, resignada. «Cordeiro» é a única palavra que sabe grafar.
Aos 25 anos, Emília Cordeiro mudou-se para França, para ir viver com o marido. Uma mudança brusca para alguém que nunca andou na escola. «Ia atida ao meu homem porque nem familiares lá tinha. Nunca aprendi bem o Francês. Não sabia ler nem escrever, não sabia nada e custava-me aprender», desabafa. Durante o processo de adaptação, o dinheiro foi um dos aspetos mais difíceis porque não estava habituada a utilizá-lo. As tarefas mais simples, como ir às compras, eram um “bicho de sete cabeças” mas, com o tempo, Emília foi aprendendo a relativizar: «Ir ao mercado era difícil, quando estavam duas coisas na mesma tabuleta, tinha que apontar para o que queria. Quando andava de autocarro, perguntava sempre ao motorista para onde ia». Fazer um prato seguindo uma receita também estava fora de questão, mas Emília aprendeu a contornar as dificuldades. «Mesurava com uma colher e era assim que me guiava», explica.
Viveu em Paris mais de 40 anos, teve dois filhos, mas confessa que nunca gostou de lá estar e foi por isso que depois do falecimento do marido, há cerca de duas décadas, decidiu regressar: «Sempre gostei de Portugal e o meu marido sabia. Por isso, quando estava prestes a morrer, disse aos nossos filhos: “Se a mãe quiser ir para Portugal deixem-na ir”». E Emília veio.
“Nunca fui à escola, tinha de trabalhar para comer”
A pele engelhada, as mãos grossas e deformadas, não deixam enganar mas a lucidez que transparece no seu discurso faz-nos ter dúvidas. Estaremos nós perante uma senhora com quase um século de vida? A resposta é sim. Maria da Graça, hoje com 99 anos, é natural do Alqueidão da Serra, onde viveu toda a vida. É uma das milhares de pessoas em Portugal que nunca foi à escola. E porquê? «Precisava de trabalhar para nos manter e para comer». Era a mais velha de quatro irmãos e carregava a responsabilidade dessa posição. Toda a vida trabalhou nas fazendas onde, recorda, semeava toda a agricultura que era precisa para uma casa, como trigo, milho e batatas. Levou uma vida de dedicação à agricultura e garante que nunca pensou em fazer outra coisa. Era feliz no campo.
A sua vida atarefada não lhe permitia pensar além da sua rotina mas admite que chegou a ter vontade de aprender a ler e a escrever. «Não tinha vagar», frisa. Mais tarde, quando muitos foram para a escola em adultos, Maria da Graça confessa que ficou triste por não ir mas, hoje em dia, garante que «já não sente pena» de não ter tido essa oportunidade. Acha que a sua vida poderia ter sido diferente se tivesse aprendido? A resposta, imprevisível, provoca o riso geral: «Não! Há delas [outras mulheres] da minha idade que aprenderam a ler e a escrever e andam sempre como eu».
Maria da Graça é um exemplo de luta e sobrevivência. «Quase todos os meus irmãos estiveram ruins com essa moléstia [febre tifoide], só eu é que escapei». Sem haver remédios ou sítios onde os comprar, a alqueidoense conta que chegou a ir a pé desde o Alqueidão da Serra até Porto de Mós com uma panela «bem fechada» para ir buscar gelo para ajudar a curar os irmãos. Um esforço que tantas vezes se revelava inútil quando chegava e via que o gelo se tinha transformado em água.
“A minha vida mudou muito desde que leio”
Na vida, nunca é tarde demais para correr atrás dos sonhos e Celeste Carreira, de 84 anos, é a prova disso. Sem se conformar com o destino que lhe parecia estar traçado, aos 40 anos decidiu aprender a ler. Já casada e mãe de três filhos, inscreveu-se na escola para adultos. «A minha ideia era aprender a ler. Vi outras pessoas, mais velhas do que eu a ir e eu quis ir também. Foi difícil mas gostei muito de andar lá», conta. Depois de feito o exame, completou a 3.ª classe de adultos.
Celeste Carreira teve uma vida igual a tantas outras meninas da sua idade. Nasceu no Alqueidão da Serra e pouco tempo depois já estava a guardar ovelhas. Cresceu, trabalhou numa fábrica e, aos 24 anos, casou. Com o casamento, passou a dedicar-se à vida doméstica e ao campo. Sem que o seu marido soubesse ler ou escrever, Celeste decidiu, então, ir aprender e reconhece que desde então a sua vida «mudou muito»: «Passei a conseguir ler as cartas que me enviavam para casa», refere, a título de exemplo. Da história de Celeste podemos retirar uma mensagem: nunca é tarde para alterarmos o rumo da nossa vida, seja qual for o nosso fado.
Fotos | Jéssica Silva