Dias 7 e 8 de dezembro de 2022, «fim de semana negro para o futebol», nas palavras do presidente da Associação Portuguesa de Árbitros de Futebol (APAF), Luciano Gonçalves. Pelo menos seis casos de violência sobre os árbitros nos campeonatos distritais, um pouco por todo o país, um dos quais num jogo da Divisão de Honra de futsal da Associação de Futebol de Leiria (AFL): o jogador do CR Chãs, Marcos Duarte, agrediu o árbitro, depois de uma decisão com a qual não concordou, num jogo diante do Juncalense. Mais cinco árbitros foram agredidos, em jogos das Associações de Futebol de Lisboa, Algarve, Aveiro e Porto. Estas situações não são atípicas, aliás, são o “prato do dia” no desporto, em particular no futebol e futsal, mas este foi um fim de semana onde a violência marcada desencadeou várias reações por parte de dirigentes e responsáveis. “Olhamos” aqui para o futebol, o desporto que move mais multidões em Portugal e que, por isso, é também uma das modalidades onde se registam mais casos de violência, mas a mensagem é transversal a todas as modalidades: a violência e o desporto não cabem na mesma frase.
“Violência é reflexo da nossa sociedade, cada vez mais violenta”
«Como é possível, até quando isto vai continuar?», a pergunta foi lançada por Luciano Gonçalves, após os vários casos de violência. Para o presidente da APAF não há dúvidas «que entre os vários fatores» que desencadeiam a violência, um deles tem que ver com «a questão social»: «Isto é o reflexo da nossa sociedade, temos uma sociedade cada vez mais violenta, cada vez com menos valores e, naturalmente, o futebol acaba por refletir isso, acaba por ser um escape para algumas pessoas envolvidas, jogadores, dirigentes, adeptos, é ali que vão despejar toda a frustração do dia a dia», acredita. Luciano Gonçalves considera ainda que «a perceção que vai existindo de impunidade» é geradora de mais violência. «Como não existe uma nítida imagem de castigo quando estas coisas acontecem, ou então demoram muito tempo até serem castigados, acaba por diluir e já não ter impacto, acaba por passar uma ideia para a sociedade de que tudo isto é permitido», refere.
Os castigos para quem pratica qualquer tipo de ato de violência tem de ser algo «que fira, de alguma forma, aquilo que é a paixão». «Um atleta, um treinador, um dirigente ou adepto, se o é, é porque é um apaixonado fervoroso por aquilo que está a praticar, mas se tem este tipo de comportamentos, tem que perceber claramente que está, não só a denegrir milhares de pessoas que trabalham de bem, como acaba por afastar as pessoas do desporto», reflete Luciano Gonçalves.
«Tem que existir coragem para que estas pessoas, quando agridem outra pessoa de uma forma banal, porque é assim, banal, de uma forma cobarde, a agredir alguém que não tem como se defender, serem retiradas do desporto, deixarem de fazer parte do mundo desportivo» – é desta forma que Luciano Gonçalves considera que devem ser tratados os atletas/dirigentes que cometem estes atos de violência. Quanto ao «adepto comum, tem que ter punições financeiras graves durante algum tempo», para que ele perceba que «aquilo lhe está a sair do bolso» e deve ser «proibido de entrar em recintos desportivos».
A violência não vem (apenas) das claques
Hoje é uma «falácia associar violência às claques», até porque atualmente o número maior de agressões surge por parte dos adeptos comuns, que não estão agregados a qualquer organização. «Onde temos tido mais violência é na base do futebol, onde, principalmente nos últimos anos, se tem notado o crescimento de agressões de pais [dos jovens atletas envolvidos nos jogos], nos escalões de formação», analisa. Na opinião do presidente da APAF, tudo isto tem que ver com um “fenómeno” a que tem por hábito chamar de “Cristianismo” e “Messismo”: «Nos últimos anos, o pai, a mãe, o avô, o tio, pensam que têm ali o Cristiano Ronaldo e o Messi e saem fora de si, completamente, quando as coisas não estão a correr bem para os seus filhos/parentes». Apesar de Luciano Gonçalves representar os árbitros, que são das maiores vítimas destes atos, a verdade é que também a «violência sobre treinadores, nomeadamente de futebol de formação, tem aumentado muito». A explicação, no entender do ex-árbitro, é «essa mesma: a pressão que os pais colocam sobre os próprios filhos desde muito cedo», não aceitando decisões de arbitragem ou opções técnicas. «Os próprios clubes dão uma importância muito grande aos jovens, a partir dos seus 10, 11 anos, quando vão treinar ao Sporting, ao Benfica, FC Porto, isso dá-lhes logo um mediatismo muito grande e o pai pensa logo que o filho é uma estrela».
E a saúde mental?
«Sabemos de alguns casos mais complicados e estamos a acompanhá-los e continuo a achar que não são mais, porque ainda existe um pouco, tal como noutras áreas da sociedade, dificuldade em assumir que não se está bem e na arbitragem não é diferente».
Luciano Gonçalves
Se por um lado, Luciano Gonçalves admite que a violência é hoje uma realidade e acontece de forma mais banalizada, rejeita que, em número, seja maior do que havia há algumas décadas, recebe é mais mediatismo. «Felizmente existem menos agressões, até porque existem muito mais jogos do que antigamente. O que acontece é que hoje há mais falta de respeito, pequenos delitos encontramos imensos, de faltas de respeito, de perseguições, às vezes só de intimidação e pressão e também se fala mais sobre isto», refere. «A nível de agressões tem reduzido, mas isso não pode validar, de forma nenhuma, que se deixe, que se abrande na luta, enquanto exista uma agressão sequer, devemos continuar a lutar contra ela», reitera.
“O desporto é um direito de todos” que os agressores não podem impedir
Com ou sem violência, «o desporto vai sempre vencer», é a convicção do presidente da Associação de Futebol de Leiria (AFL), Manuel Nunes. Tal como a Educação, a Saúde e a Habitação, o Desporto é também um «direito de todos» e um «instrumento fantástico de formação». Por ser um direito constitucional, os governos «têm de implementar programas para que as pessoas possam ter acesso a ele»: «É para isso que servem algumas verbas públicas». Há estudos que provam que «um euro investido no Desporto, vai resultar em três euros poupados na Saúde». É por isso que Manuel Nunes não entende alguns «comportamentos» que prejudicam o desporto. «Não pedimos a ninguém que fique sentadinho, mas sim que tenha comportamentos corretos, de apoio à equipa, de incentivo, bairrismo, as violências são anormalidades», frisa o dirigente.
Na opinião do responsável pelo futebol em Leiria, a violência no desporto é transversal a tudo na sociedade. «Todos os meses há notícias de violência conjugal, cívica. Era impensável há uns 30 anos haver, como há hoje, o número de agentes da PSP e GNR agredidos», salienta. «Não é nenhuma desgraça perder-se um jogo, há quem não suporte perder um jogo, mas têm que ter paciência e não podem perturbar a multidão que está a ver o jogo, os jogadores e os dirigentes dos clubes que passam muitos dias de trabalho para permitirem que jovens pratiquem uma modalidade e que, por causa de dois ou três indivíduos que não deviam estar presentes, podem vir a ser prejudicados», reflete. E se inicialmente falámos de uma violência que acontece dentro das quatro linhas, para com os árbitros, Manuel Nunes acredita que a violência que cresceu de forma acentuada foi a que acontece «na bancada, nas ruas, em determinados acessos a recintos»: «É importante dissociarmos a violência no ato desportivo, que não é a maior, a que tem aumentado muito é a que está associada ao desporto», afirma.
AFL defende ensino de ética nas escolas
Embora confie nas leis e punições que existem atualmente, assim como nos programas promovidos pela Federação Portuguesa de Futebol e pela própria AFL, Manuel Nunes acredita que é preciso «insistir cada vez mais» para acabar com estes comportamentos. «O que está em vigor é relativamente razoável, porque se não, vamos cair no absurdo de ter um polícia a cada esquina, não é solução», começa por referir, explicando depois que «foi criada uma autoridade para o combate à violência no desporto, que não existia, começou-se a identificar pessoas que não podem continuar a ver os jogos». No entanto, ainda há dificuldade «por parte dos dirigentes dos clubes em conseguir controlar um ou dois indivíduos desestabilizadores»: «Sei de alguns casos de indivíduos excecionais que a jogar se transformam e na assistência também». A acrescentar a isto, existem casos «que não se entendem» de adeptos que voltaram a entrar no estádio mesmo com uma medida de proibição. «Tem que haver um sistema de segurança oficial, nacional, para controlar essas pessoas. Essas pessoas têm que estar devidamente identificadas e nos dias em que há jogos terem que estar presentes no posto da GNR ou da PSP no local da sua residência», reforça. «As multas» são também, na sua opinião, uma forma de combate.
O dirigente volta, no entanto, a salientar que acredita no sistema que existe e que deve apenas ser reforçado. «Cada vez mais a lei implica que haja um plano de segurança da instalação desportiva com um gestor de segurança. Esse gestor de segurança vai começar a ser responsabilizado pelo que aconteça», explica. Manuel Nunes defende que esta mensagem de valores éticos no desporto deveria ser passada no sistema de ensino obrigatório: «É durante esses 12 anos que as pessoas se estão a formar e a ser avaliadas. Na estrutura federada já estamos a fazer isso, ao nível da Federação Portuguesa de Futebol, das Associações, da APAF, do Sindicato dos Jogadores e outras, todos nos empenhamos no combate à violência».
“Pós-pandemia adensou violência”
«No pós-pandemia as coisas têm vindo a agravar-se, a violência no desporto e no país, acho que é transversal. As pessoas ficaram com menos paciência, mais intolerantes», considera o presidente do Conselho de Arbitragem (CA) da AFL, Carlos Amado. Após a agressão de um jogador da Divisão de Honra de futsal do distrito, Carlos Amado reforça: «O que nos preocupa é perceber que isto está num ponto em que temos que tomar medidas para evitar que alastre e essas medidas passarão seguramente por punições mais duras, tanto a nível desportivo como a nível criminal», afirma.
Estará esta violência a afastar os árbitros no contexto da AFL? «É uma das coisas que me preocupa bastante», sublinha o presidente do CA. «Vem comprometer o que é o recrutamento, mas o mais complicado nem é ao nível do recrutamento, porque ainda vamos conseguindo fazer, o mais complicado é reter os jovens. Eles tiram o curso e depois vão para os campos apitar, estão a dar os primeiros passos, e são insultados com alguma violência», reflete. «Passado pouco tempo», frisa, «vão-se chatear» e todo o trabalho que o CA faz «ao nível do recrutamento e formação» vai “por água abaixo”.
E a saúde mental?
«Nós temos chegado a esse ponto de desgaste, também temos alguma preocupação no acompanhamento que fazemos. Os jovens árbitros estão com árbitros mais categorizados, com mais experiência. Também temos alguma preocupação em acompanhar a atividade deles, percebendo se há algumas situações mais difíceis, também para os preservar nas semanas seguintes e lhes dar algum acompanhamento ».
Carlos Amado
Carlos Amado salienta também que estas agressões não afetam só os árbitros, mas adeptos, treinadores, atletas, dirigentes, todos os que compõem a estrutura desportiva e «desde os escalões de formação». Ainda assim, o presidente não é «a favor de banir» por completo os agressores: «Acho que toda a gente tem direito a uma segunda oportunidade, de poder refletir e repensar os seus comportamentos». No entanto, é a favor de medidas duras. «Quando há agressões, devem existir punições exemplares, severas, para que sejam um exemplo e dissuasoras deste tipo de comportamentos no futuro», afirma.