O lado certo da vergonha…

18 Março 2025

A violência doméstica era motivo de piada da minha família. O meu bisavó, com uma violência ateada pelo vinho, dava grandes doses de pancada na minha bisavó Rosa, que nunca se dava por vencida. Era com a sua resistência que brincávamos. “A última palavra tinha de ser sempre a dela, mesmo que ainda apanhasse mais”.

Muita coisa mudou desde esses tempos do Estado Novo, no entanto a violência doméstica está longe de ser um eco do passado. As vítimas apoiadas pela Associação Portuguesa de Apoio à Vítima aumentaram 22,9% em três anos. São predominantemente mulheres entre os 36 e os 45 anos de idade e o perfil dos mais de 31 mil agressores identificados nos últimos anos corresponde maioritariamente a homens na mesma faixa etária. No ano passado 19 mulheres foram mortas por homens, em contexto de violência doméstica. Em 2023, 17 mulheres. Em 2022, 24 mulheres. E assim por diante.

Não são percepções. É apenas uma ponta de icebergue porque, ao contrário do tempo da avó Rosa, a violência doméstica hoje já não é socialmente aceite com a mesma ligeireza e há uma grande vergonha em pedir ajuda.

Volto ao caso muito conhecido de Gisèle Pelicot, cujo marido a drogou e organizou violações em massa. Aos 72 anos de idade, esta avó francesa representa um extraordinário exemplo de coragem. “Quando somos violadas, a vergonha não é nossa, é deles”, disse.

Ela mostrou que uma vítima de violação não deve esconder-se, nem ter vergonha do que aconteceu – a vergonha é do violador. Ela recusou o anonimato, recusou um julgamento à porta fechada e tornou o seu calvário público porque a vergonha tem de estar no lado certo: no agressor.

Vergonha não é ser-se dependente financeiramente de um marido que bate ou agride verbalmente, que quer impor com quem a mulher fala, como se veste ou como se comporta. A vergonha é de um agressor que em vez de empatia ou amor, tem apenas um sentido narcisista de posse.

Vergonha não é ter adbicado da autonomia em prol de uma família, vergonha é o agressor defender o seu regime de escravatura doméstica é ainda por cima sentenciar que esse trabalho não remunerado e de cuidado à família não valem nada.

Vergonha não é uma mulher expor a violência de que é alvo, mas de polícias e juízes com uma visão patriarcal que ainda dizem à mulher: “ele fez isso porque a ama”.

Temos de mudar a vergonha para o lado certo da questão: o lado do agressor. Não é um exercício fácil e rápido, porque implica mudar-se mentalidades.

Joana Dias é escritora e foi vítima de violência doméstica. No seu livro “Nós, As Indecentes” escreve: “Espera-se de mim, de qualquer mulher, que encaixe num de dois papéis: galdéria ou mãe, bruxa ou gata borralheira, puta ou santa, é esta visão binária de extremos que arrasa a auto estima de qualquer uma”.

É contra a vergonha e a destruição da auto estima das vítimas da violência doméstica que não nos podemos calar, nunca. Porque não podemos esperar que estes crimes se resolvam como no caso da Bisavó Rosa: ficando viúva e tendo 17 anos para descansar o corpo da porrada.