Patrícia Santos

Palavras que aleijam

2 Ago 2024

Tenho um grande amor pela palavra. Ela é o alicerce das ideias e emoções. Assim não fosse, não seriam tão acesos os debates sobre a liberdade de expressão.

Vivemos numa era de atrofia da linguagem, com discursos cada vez mais simplistas e criados para caberem numa meia dúzia de caracteres ou poucos segundos de vídeo. Mas, sem palavras para construir um argumento, o pensamento complexo torna-se impossível.

Um atrofiamento de ideias que coabita com sociedades complexas, interligadas à escala global, onde uma frase não basta para explicar as causas das dificuldades que enfrentamos no Serviço Nacional de Saúde, na Educação e na Justiça, e tão pouco cabe numa frase a solução.

As classes políticas há muito que perceberam que as campanhas não se ganham pelo brilhantismo do programa eleitoral (que poucos leem), mas pela ideia principal que conseguem plantar na mente dos eleitores. Interessam mais vídeos de um minuto no TikTok do que uma entrevista de fundo a um jornal de referência.

As televisões perceberam que é muito mais barato substituir jornalismo de investigação por magotes de comentadores malabaristas, especialistas em política, economia, engenharia espacial e horticultura. E estes, por seu lado, perceberam que palavras incendiárias dão audiências e são boas para segurar o lugar no estúdio.

Por dia, entre dois a três milhões de artigos de notícias são publicados em plataformas digitais. Palavras sensatas, discursos ponderados e longos não casam bem com a sofreguidão do imediato. Chocar e afrontar é uma forma eficaz de sobressair no espaço mediático. Os jornais sensacionalistas descobriram isso muito antes de se inventarem as redes sociais.

Inquieta-me que fórmulas linguísticas com o requinte de taberna tenham sido adotadas por uma classe política oportunista, que mata qualquer tentativa de confronto de ideias com meias verdades, mentiras completas e factos distorcidos. E isto não quer dizer que os debates tenham de ser mornos e cordiais. A história parlamentar portuguesa pós 25 de Abril conta com debates violentíssimos no plano das ideias. Mas não se delapidavam pessoas, comunidades e caráter.

É que o grande problema de líderes políticos e de opinião usarem palavras de ódio e revolta é que as palavras acendem ideias e as ideias transformam-se em ações. Os ataques a tiro a Donald Trump e ao primeiro-ministro da Eslováquia, ou o crescimento de crimes de ódio contra emigrantes e minorias, espelham bem o perigo de querermos trocar o estado de direito pelo justicialismo.

O politicamente incorreto foi entronizado como uma forma corajosa de afrontar o poder instituído. Não sei se lhe acontece, mas quando encontro uma pessoa que se gaba de ser muito frontal, quase sempre é apenas mal-educada. E se eu não confio os destinos da junta de freguesia ao chico esperto da tasca, que tem sempre a melhor resposta, também não confio aos chicos espertos versão 4.0 os destinos do país e do mundo.