A agenda do meu avô Zé

23 Julho 2024
Texto

Paulo Sousa

O meu avô Zé, o pai do meu pai, deixou-nos quando eu tinha cinco ou seis anos. Tinha passado apenas um mês desde o falecimento do avô Albino, o pai da minha mãe. Tudo aconteceu numa curta vertigem que juntou as duas perdas num luto só.

Cada um à sua maneira acabaram por se tornar para mim as referências difusas e distantes de um tempo antigo e de um mundo de que apenas tive conhecimento pessoal por aquilo que me recordo deles.
Lembro-me do meu avô Zé ser muito reservado. Ninguém duvidava do extremo amor e dedicação à minha avó e a cada um dos seus filhos, mas também ninguém se lembrava de que alguma vez tivesse dito uma palavra que o demonstrasse.

No dia em que morreu fiquei surpreendido pelo choro desesperado da minha avó deitada em posição quase fetal na sua cama. Nunca lhes tinha observado afecto que justificasse aquele pranto. Apenas conhecia as rotinas automáticas de uma relação reservada e descobri nesse dia, e nessa hora, que afinal, além do recato respeitoso perante nós, que éramos o primeiro ciclo à sua volta, as décadas de luta partilhada assentavam afinal num amor que me fora ocultado.

Após voltas e mais reviravoltas, entremeadas com diversas paragens com várias décadas de duração, chegou-me há dias às mãos uma agenda do meu avô Zé. Nela estão registadas datas de sementeiras, jornas a pagar por trabalhos feitos, assim como receitas e despesas diversas. O que seriam à época apenas registos banais, embora metódicos, acabaram por me levar numa viagem de memórias que não tinha.
A sobrevivência da família e o governo da casa eram uma ciência baseada na frugalidade. Havendo a quem, até as borras de vinho podiam ser vendidas.

Na história universal o dia 3 de Agosto de 1943 ficou marcado pelo início da Operação Rumyantsev em que o Exército Vermelho tentou recuperar a cidade de Kharkiv na Ucrânia. Nesse dia o meu avô começou a época de praia. Às 5 da manhã meteu os filhos todos, ainda a dormir, debaixo de uma manta no carro puxado por uma junta de bois, e seguiu a pé com os bichos pela arreata. Pelos meus tios soube que numa dessas viagens seguiu com eles uma galinha adormecida empoleirada no eixo fixo do carro de bois, que depois de adormecer no curral só acordou uns solavancos mais tarde, já na descida para o Valado.

Nesse ano de 1943 terão alugado uma casa na Rua Magalhães Lima número 16 e o contacto parece ter sido a Dona Mecia Bem. Provavelmente alguma peixeira que terão conhecido pela venda de porta a porta. A ida à praia era como que uma obrigação motivada por fins terapêuticos. Ele e a minha avó eram primos direitos e, por recomendação médica, uns dias junto ao mar eram uma forma de minimizar as consequências da bronquite que, a diferentes níveis, afligia todos os filhos. Chegaram ao alto da Pederneira, na última descida até ao mar, pelo meio dia.

O primeiro de Dezembro de 1943 ficou marcado pela Declaração do Cairo na qual Roosevelt, Churchill e Chiang Kai-Chek exigiram a rendição incondicional do Japão. Nesse dia o meu avô semeou favas no terreno que conhecemos por Valdeus.

No dia 6 de Dezembro os primeiros judeus italianos foram enviados de Milão e Verona por comboio rumo a Auschwitz. Nesse mesmo dia o meu avô semeou aveia nos Olivais. Já lá vão mais de oitenta anos.

Cada uma das datas ali anotadas corresponde a um acontecimento digno de registo na vida rural do meu avô, e é interessante compará-las com o que estava a acontecer ao mesmo tempo pelo mundo fora. A guerra mantida à distância pela nossa geografia e pela habilidade diplomática de Salazar era algo muito remoto e a aparente banalidade destes apontamentos é um testemunho do universo paralelo e remoto do mundo rural português dessa época.

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