A quadra natalícia

20 Dezembro 2024

A quadra natalícia, belíssima no seu esplendor, remete para espírito jovem. E é com o espírito de jovem que deixo o pequeno conto de um espírito que também se quer jovem:

“O cão late na rua. O chá encontra-se a arrefecer na mesa, lá vai o tempo em que ainda tolerava a sensação de língua queimada. Eu não me lembro, por enquanto, mas daqui a dois dias é o meu septuagésimo sétimo aniversário. São 21 horas e preparo-me para deitar. Amanhã tenho um dia grande pela frente. O telefone toca e eu fico com receio. Lembro-me da história da vizinha Ermelinda, Deus a tenha, que foi assaltada faz agora três anos. Os gatunos ligaram-lhe para ver se a casa estava vazia, ela com o receio fundamentado de quem vive isolada e sozinha, não quis atender um telefonema de um número desconhecido a horas tão inapropriadas. Acabou por apanhar um susto de uma vida quando dois homens, que não passavam de gaiatos, lhe romperam casa adentro, com facas na mão. Por sorte e Deus nosso Senhor, nada de mal lhe viria a acontecer nessa noite. Mas quem sabe. Nunca fiar. 

– Estou sim. Disse a medo. 

– Pai! Há quanto tempo! Retorquiu a voz mais doce que alguma vez ouvi, desde que me chamou pai pela primeira vez há 40 anos. 

– Minha filha, como estás? E os meninos? Que saudades de te ouvir.
– Estamos todos bem e tu? Como vais? Alguma novidade da terra?
– Cá vou, minha filha… Olha faleceu aquela tua antiga vizinha, sabes? Aquela que morava mesmo em frente à tua casa cá da terra. 

– A dona Augusta? 

– Sim, sim filha, já estava muito mal, coitada. 

– É uma pena, uma senhora impecável. Os filhos ainda estão na Suíça? 

– Estão mas, entretanto, já chegaram a Portugal para o enterro. Então e vocês? Quando cá vêm? 

– Estávamos a tentar ir para o teu aniversário, mas ainda não sei se o Nuno vai trabalhar no sábado ou não. Depois digo-te. Ouve-se uma criança a chorar e a voz distante a gritar “João!”. Tenho de ir pai, estes miúdos hoje estão insuportáveis, beijinhos!
Já só ouvi o som da chamada desligada. Pi pi pi…
Não pude deixar de sorrir, já fazia uma semana que a minha Isabel me ligava. Ela é muito boa filha. Só que teve de se mudar lá para os lados de Lisboa, a vida aqui na terra não era para ela. E o Nuno também sempre preferiu Lisboa. Fazem-me falta todos os dias. Mas eu só quero o bem deles, e se eles estão bem lá por Lisboa, eu cá também fico bem.”

Que as mesas de Natal estejam sempre recheadas, de amor, de presença, de juventude. Em idade e em espírito. Que a presença seja o presente.