Aqui está, como prometemos na anterior edição, a segunda parte de uma reportagem dedicada à temática do Desperdício Alimentar. Como foi possível perceber pelos testemunhos revelados na edição 976 de O Portomosense, o desperdício é uma realidade inegável e preocupante, no entanto, já são muitos os exemplos positivos do seu combate. Será assim no concelho? Leia e tire as suas conclusões.
NA PADARIA/PASTELARIA TIMÓTEO PRODUZ-TE QUASE… O QUE SE CONSOME
Há dois anos, Ismael Timóteo, juntamente com a sua mulher, ambos de São Bento, decidiu seguir uma vontade antiga, aproveitando um espaço em processo de trespasse para abrir a Padaria/Pastelaria Timóteo no centro da vila de Porto de Mós. “Roma e Pavia não se fizeram num dia”, já diz o ditado e disse também Ismael Timóteo, referindo-se a estes dois anos. Embora nem tudo o que há para conquistar já esteja conquistado, a verdade é que o espaço tem tido sucesso e já fidelizou clientes.
Sabendo «mais ou menos» com o que pode contar a cada dia, Ismael Timóteo tem optado por produzir a quantidade que se consome. «Conseguimos adaptar-nos porque temos os clientes certinhos, sabemos mais ou menos a quantidade. Às vezes falta um certo produto, às vezes sobra, mas nunca foge muito», explica o padeiro e pasteleiro. No fim do dia, «sobra muito pouco», mas há solução para esses produtos: «Quando sobra dou aos dois porquinhos que tenho».
Para Ismael Timóteo, aproveitar estas sobras para criar novos bolos/receitas não faz sentido: «Prefiro fazer menos e saber que não vai sobrar muito, do que reaproveitar. Acredito que o cliente prefira sempre o produto fresco», frisa. Só confeciona de manhã e quando determinado produto acaba, não volta a confecionar, vende o que ainda está na montra. Quando as pessoas têm «pedidos especiais normalmente encomendam».
Além de pão e bolos, neste estabelecimento são fornecidas também «refeições rápidas, como sopas, sandes variadas e tostas». Também aqui «não sobra nada» porque só vai «sendo feito conforme a necessidade». «Fazemos duas sandes de panados, duas sandes de pastas e depois temos tudo a jeito para fazer mais conforme o cliente vem e pede», esclarece. Apenas a sopa, por vezes, é mais difícil de prever, por não ser fácil confecionar em pouca quantidade: «Mas, neste caso, como eu tenho duas crianças pequenas, aproveito e fica a refeição feita», diz, entre risos. Ismael Timóteo garante que desperdiçar, para si, «não faz sentido», não só pela vertente ambiental mas também «em termos económicos».
O “MASSACRE” DOS RESTAURANTES PREMIADOS
Samuel Mota é atualmente o proprietário do restaurante Casa Tradição localizado em Alfama. Natural do Tojal de Cima, o chef é já conhecido por muitos portomosenses por promover, nas Festas de São Pedro, a Cozinha de Demonstração. Já passou por várias cozinhas e agora é mesmo Samuel Mota que gere a sua própria cozinha e que aceitou falar sobre o desperdício da sua “casa”. «A cozinha evoluiu muito, há técnicas de conservação mais avançadas que antigamente», começa por referir. Por existirem «máquinas de conservação a vácuo, onde se colocam os produtos que depois são pasteurizados» é possível, em cozinhas mais avançadas, evitar muito desperdício, sobretudo «proteína animal». «Temos um desperdício muito pequeno nessa parte», sublinha. Ainda assim, lamenta Samuel Mota, não é possível fazê-lo com todos os alimentos: «Na parte dos hidratos de carbono e dos legumes, é mais difícil. Temos que ter legumes, o arroz, pré-preparados para quando entra um cliente esperar menos tempo», explica.
Há também um controlo da acumulação de stock, juntando duas motivações: evitar desperdício alimentar e financeiro. Mas atualmente, o método de trabalho dos restaurantes também vive de produção em massa, tendo em conta o número de clientes habitual, o que permite ir aproveitando este stock. «Um restaurante pode produzir logo 30 quilos de um puré de tomate de uma vez e congelar a vácuo e vender durante um mês», revela Samuel Mota. «Se eu tivesse 30 cozinheiros e 20 clientes por dia, que não é muito, podia fazer produção até seis meses de um produto porque hoje há técnicas que permitem», explica ainda.
Onde o desperdício é um «massacre» é nos «restaurantes de alta cozinha, com estrelas Michelin», alerta o chef: «Nos melhores restaurantes do mundo, até chegarem ao produto perfeito desperdiçam muito. Quando se quer fazer uma batata suflê que tem que inchar, apenas duas em 10 batatas incham, o resto vai para o lixo», revela. Por isso «nem todos os chefs têm estrutura financeira para ter alta cozinha», salienta. «Às vezes estou a idealizar um prato e penso que não posso ir por ali porque vou perder o controlo dos custos e do desperdício», conta. O chef reforça ainda: «Nos restaurantes premiados não existe regra, existe o resultado final. É importante ter noção que esses prémios têm muito desperdício inerente», frisa Samuel Mota.
Casas mais sustentáveis que restaurantes
«Muita coisa se pode fazer» na casa de cada um para evitar um maior desperdício, sobretudo quem tem «produção», refere. «Às vezes as pessoas produzem em casa três ou quatro pés de tomate e dá uma quantidade absurda» que pode ser congelada, por exemplo. No entanto, o chef acredita que a maior parte das pessoas que produzem, nomeadamente as mais antigas, «sabem exatamente como vão conservar os produtos». «Acho que há menos desperdício em casa das pessoas do que nos restaurantes», afirma. Ainda assim, o chef deixa alguns exemplos: «As couves podem ser escaldadas para guardar a clorofila e não perderem estrutura e cor e depois congeladas, podem fazer-se as conservas antigas nos frascos que depois são pasteurizados numa panela com água quente, tapa-se e dura quatro meses, purés de tomate, beringela, curgete que se podem congelar ou mesmo conservar em picle».
FRUTAS E LEGUMES, COMO LIDAR COM A CURTA PERECIBILIDADE?
Frederico Amado gere a empresa Frutas Amado desde 2002, um negócio de família que fará 30 anos no final deste ano. «Um comércio de hortofrutícolas, destinado principalmente à seleção e distribuição de mercadorias», explica o gerente. Apesar de ter este propósito principal de distribuição, tem também uma loja de venda ao consumidor final em Mira de Aire. O estabelecimento grossista está sediado em Serro Ventoso. Os seus principais clientes são, além do concelho de Porto de Mós, dos concelhos de Batalha, Leiria e alguns na área de Lisboa, no concelho de Mafra e em Torres Novas, distrito de Santarém.
O responsável foi mais um dos que aceitou dar o seu testemunho quanto à gestão do desperdício na sua empresa. «Como é sabido, a fruta é um produto muito perecível e há determinados tipos de fruta que são ainda mais, nesses tentamos ter stocks que sejam consumíveis no prazo máximo de seis/sete dias», para «ter sempre produto novo a chegar e estar nas melhores condições na loja ou à mesa do cliente», sublinha Frederico Amado. Por vezes «os planos ou perspetivas de venda não correm como planeado e pode haver excedente» e para esses casos há solução: «Como trabalhamos com algumas instituições, muitas vezes entregamos como donativo. Quando os produtos já não estão mesmo condições, são encaminhados para a alimentação animal», explica o gerente.
A Frutas Amado também já adotou o sistema de “caixa-promoção” com frutas e legumes mais perto do seu prazo de consumo, no entanto, não «teve muita adesão». «Sempre que havia uma fruta com um pequenino toque era colocado nessa caixinha e vendido a um preço simbólico, mas as pessoas efetivamente gostam de comprar aquilo que é bonito, nem sempre o que é bom», lamenta. Frederico Amado alerta para o facto de, muitas vezes, o consumidor ser enganado pelo aspeto bonito das frutas e legumes, que nem sempre ditam a sua qualidade e o que leva a um maior desperdício. «Podemos falar de diversos tipos de fruta em que não é o aspeto que conta mais para o fruto ser melhor, mas sim determinadas características, na pele dos pêssegos, por exemplo, quando há uma mancha acastanhada rija com umas pintas brancas, o pêssego é muito mais doce, a carepa na maçã também a faz mais doce, a beleza na fruta não é tudo», defende.
Frederico Amado acredita que nem a crise mudará esta mentalidade: «Os olhos continuam sempre a ser os primeiros a comer, a grande questão passa por educar as gerações jovens». «Enquanto não houver esse ensino, quem não perceber nada de fruta vai escolher a maçã ou a pera mais bonita», frisa. O que pode vir a mudar alguma coisa, é a «nova política europeia que será implementada ao nível da produção biológica»: «A necessidade de produzir mais biologicamente vai levar a que exista mais fruta disponível no mercado com esse tipo de manchas ou imperfeições na pele que normalmente é mesmo isso, defeito na pele e não na polpa».