Passei pela feira do livro em Lisboa, comprei quatro livros que já li. Um deles é do escritor Hugo Mãe e tem por título A máquina de fazer Espanhóis. Passe a publicidade.
Embora o título, aparentemente, seja pouco sugestivo, o seu conteúdo faz-nos parar, para pensar na vida e sobretudo na morte. Não há nada de novo debaixo do sol. Morrendo, pagamos à terra o que lhe devemos. A provação é igual para todos, mas o universo humano da história ali contada é daqueles que têm a “felicidade” de avançarem na idade até ao ponto de necessitarem da ajuda de terceiros para se manterem vivos.
Sobretudo para aqueles que se veem na necessidade de terem que serem recolhidos em lares, onde são muitas vezes colocados no meio de estranhos. Quase todos com as suas caturrices, doenças, casmurrices, vaidades, frustrações, e maleitas, e muitos “velhos da cabeça”. A mim tocou-me de perto esta história porque já fui presidente da Assembleia Geral de um lar de terceira idade. As minhas funções não tinham muito a ver com vivência dos utentes, mas às vezes dava comigo a circular por entre vultos, sentados, calados, tristes, outros curvados arrastando-se penosamente, longe daqueles a quem tudo deram. Impressionavam-me sobretudo os silêncios. Naquelas situações os funcionários esmeram-se nas suas prestações, e por vezes até são vítimas de mal-entendidos próprios da situação, mas é evidente que o ambiente é um pouco pesado e, talvez por isso e naturalmente, os utentes vão ficando “desmiolados”, vulgo “velhos da cabeça”, para não pensarem muito no que está para vir. Ir vivendo é adiar o fim.
Um dia estava eu na sala de convívio à conversa, quando a utente D. Irene entrou na sala, arrastando os pés, de olhar fixo, inexpressivo e amparada por um funcionário que a sentou ao lado do meu interlocutor afastando-se em seguida. A D. Irene continuou, hirta, a olhar para o vazio e disse: “Traga-me um copo de água”. Não se tinha apercebido que o funcionário já ali não estava. O meu interlocutor, também utente, mirou-a de baixo a cima e respondeu-lhe: “Vá lá você”. Levantei-me de imediato na tentativa de dar água à senhora, mas eis senão quando entrou a filha da D. Irene e ouviu da boca desta a queixa de que tinha acabado de pedir um copo de água ao funcionário e que este lhe teria respondido que fosse lá ela. Claro que a recém-chegada ficou possessa e manifestou a intenção de pedir responsabilidades.
Serenou com a minha explicação, mas se eu ali não estivesse, estavam criadas as condições para uma confusão. Sejamos tolerantes em idênticas circunstâncias.